Querido leitor,
Esta cartinha deveria ter chegado ao seu e-mail no domingo pela manhã, mas, o frio se fez presente aqui em Porto Alegre - e, com ele, a tempestade, a falta de luz e a queda da internet. Faz parte, mas atrapalhou um pouco a minha organização. Embora devo dizer que existe uma beleza em aproveitar o friozinho, colocar um pijama e ir para debaixo das cobertas ouvindo a chuva cair e lendo um bom livrinho.
Estou lendo alguns bons livrinhos: sigo na leitura de As convidadas, da Silvina Ocampo - porque leio um conto e fico pensando na vida -, comecei a ler Fanny Brawne - a biography, pesquisa da Joanna Richardson que, em meados da década de 1950, se debruçou sobre os registros da vida da Fanny, a noiva de John Keats. Essa biografia não possui tradução, tampouco é possível achar uma edição dela para comprar (pelo menos, eu não achei), mas, consegui acesso a ela através de uma biblioteca, o que me deixou bem feliz e comovida. Feliz porque finalmente conhecerei mais a vida da Fanny para além do Keats; comovida porque o que sabemos da vida pessoal e emocional do Keats e das mulheres importantes para ele (as duas Fannys: a noiva e a irmã - sim, elas tinham o mesmo nome) deve-se ao fato de que três gerações de mulheres insistiram em pesquisar arquivos que estavam escondidos, já que os literatos da época acreditavam que o Keats era muito “afeminado” e suas cartas pessoais poderiam desvalorizar seu trabalho como poeta. Ainda bem que essas pesquisadoras insistiram na pesquisa. Enfim, ainda escreverei direitinho a respeito disso. E comecei hoje a leitura de The Gilded Page: the secret lives of medieval manuscripts, da Mary Wellesley. Esse livro também não possui tradução (editoras, tragam-no para cá), mas está sendo uma leitura deliciosa. Já no primeiro parágrafo a autora conta:
“At some point in the sixteenth century a girl named Elisabeth Danes wrote a threat into the pages of her book: ‘Thys ys Elisabeth daness boke he that stelyng shall be hanged by a croke’ (This is Elisabeth Danes’s book, he that steals it shall be hanged by a crook [meaning “hook”]). The note appears at the bottom of the manuscript page: defiant, a little naughty, and full of bibliophilic feeling.”1
É perfeito. Quer dizer, se você gosta de ler sobre história, a história dos livros, ou apenas curte muito pesquisar sobre manuscritos - o que eu amo.
Na sexta-feira passada, tivemos o amigo secreto do QC. É sempre bom me reunir com as gurias - e por mais que saiba muito bem quantas redatoras temos no site, não deixo de me espantar ao vê-las juntinhas numa videochamada. Pouco mais da metade delas participou do amigo secreto, mas já foi o suficiente para lotar a tela - tem muita gente. E são todas maravilhosas. Fiquei emocionada.
Agradeço diariamente pelo QC existir e pelas gurias confiarem em mim para editá-las.
Mas além do amigo secreto classiquer, participo de outro: o do grupo de newsletters. No início do mês passado, aconteceu o evento O Texto & o Tempo, do qual fui uma das convidadas para conversar sobre newsletters, escrever na internet etc. Foi perfeito. A partir disso, o grupo passou a ser movimentado, repleto de debates interessantes, cheio de gente talentosíssima. E surgiu a ideia de um amigo secreto um tanto diferente: ao invés de presentes tradicionais, trocaríamos cartas escritas em nossas newsletters. Nem preciso dizer que amei a ideia. Então, cá estou eu para escrever a carta de minha amiga secreta. A pessoa que tirei me era totalmente desconhecida até então. Mas gostei de todos os textos que li dela. Minha amiga secreta é a Luisa Manske, que escreve a Andanças.
A partir daqui, querido leitor, você estará lendo a correspondência alheia (risos).
Querida Luisa,
Li algumas de suas edições da newsletter - e amei o recorte que tu deste: falar de filmes em que as personagens são andantes, pessoas que andam pela cidade e pensam na vida. Como alguém que gosta de cinema (e de escrever sobre cinema) e tem por hábito sair caminhando por horas e horas, apenas contemplando a natureza e pensando pensamentos, posso dizer que esse tipo de filme sempre me dá uma ternurinha. É algo identificável, tangível, bonito. A beleza do cotidiano.
Uma das tuas edições me chamou a atenção: aquela sobre Carol, filme de 2015, baseado no livro homônimo da Patricia Highsmith (que, inclusive, escreveu O talentoso Ripley, um livro que me surpreendeu demais e que recomendo fortemente desde então). No teu texto, tu falas sobre como o olhar é algo delicado - e é pelo olhar que muito é dito na obra. Isso me deixou pensativa porque eu tenho pensado muito nisso durante este ano. O amor esconde-se no olhar.
Milan Kundera escreveu, em A insustentável leveza do ser, que o sono compartilhado é o corpo de delito do amor. E embora eu entenda o que ele quis dizer (e até mesmo concorde, em parte, com a afirmação), sempre tive a impressão de que a marca indelével do sentimento está justamente no rosto. É no olhar, no sorriso, na expressão que nos leva a contar uma história sem dizer uma palavra sequer que delatamos imperceptivelmente aquilo ou aquela com a qual sonhamos.
Quando se ama, é possível ver o outro em nossos rostos. Um cheiro, uma palavra, uma música - é o que basta para que a memória afetiva brote das profundezas da alma, onde se esconde, acabrunhada, e surja em nossas feições. Nesse momento, não somos apenas nós: existimos em compartilhamento. Partilhamos em nosso rosto as feições do outro. O amor transparece em cada poro. É o amor à flor da pele.
Fica fácil adivinhar. Qualquer pessoa que olhar perceberá que a outra está ausente. Existe um meio-sorriso, um olhar sonhador, que anseia por algo aparentemente intangível. É possível ler em seu rosto o rosto do amor. Ela não parece mais consigo mesma.
Se existe o olhar ausente de si mesmo, que carrega consigo o outro, também existe o olhar alheio, que não compreende a mudança e pode, inclusive, enxergá-la como negativa. Mas faz parte de estar vivo. É impossível passar pela vida incólume, e isso tem um preço. O amor é um desses preços. Ele nos muda aos poucos até o ponto em que somos nós e o outro.
E isso é bom? É uma pergunta constante na minha vida.
Falando numa perspectiva mais pessoal, eu sempre fugi do amor. Não que eu não tivesse relacionamentos - intensos, interessantes -, mas, amor, amor romântico mesmo, não era algo em que eu acreditava. Pelo menos, não para mim.
Eu não queria dividir em meu corpo outra alma. Não queria transparecer meus sentimentos. Não queria estar invariavelmente conectada com alguém ao ponto de, por apenas um olhar, as pessoas perceberem que eu estava ausente de mim mesma, vivendo numa memória, num idílio, num futuro mais-que-perfeito. Eu não queria um amor borbulhante. Não queria ter esperanças. Eu queria calma, livros, natureza.
Mas ninguém passa pela vida incólume.
No mito de Pandora, é dito que os deuses, tentando vingar-se da humanidade após Prometeu ter-lhes dado o fogo e eles terem prosperado por causa disso, arquitetou o plano perfeito.
Zeus pediu a Hefesto (deus do fogo e dos metais) que criasse a primeira mulher, moldada da terra. Outros deuses participaram do embuste: Atena a vestiu de forma bela, Hermes lhe concedeu a curiosidade e o poder da astúcia, e ela também recebeu, de mais divindades, outros dons, como graça, beleza, inteligência, persuasão, paciência etc. Ao final, Pandora foi enviada a Epimeteu, o titã. Ele já havia sido avisado de que não era para aceitar nenhum presente dos deuses, mas esqueceu da recomendação ao ver Pandora e casou-se com ela.
Após o casamento, os deuses deram uma caixa (ou jarro, numa tradução mais aproximada do original) a Epimeteu. A caixa continha todos os males, e Pandora havia sido proibida de abri-la. Mas ela, abençoada pelo dom da curiosidade e da astúcia, decidiu abrir a caixa. Ao fazê-lo, todos os males se espalharam pelo mundo, atormentado para sempre a humanidade. Todos os males saíram, menos a esperança, que ficou na caixa, pois Pandora foi ligeira o suficiente para trancar alguma coisa lá dentro.
Mas fica a questão: se a caixa estava destinada a Pandora para que ela a abrisse e liberasse os males na humanidade, então, o que fazia a esperança lá dentro? A esperança lá estava porque trata-se também de um mal.
Em 3 de julho de 1819, John Keats escreveu para Fanny Brawne:
“Eu nunca fui feliz por muitos dias seguidos: a morte ou a doença de alguém sempre me impediu disso – e, agora, quando nenhum desses problemas me oprime, devo confessar que outro tipo de dor está me assombrando. Pergunte-se, meu amor, se você não está sendo muito cruel ao me fazer me apaixonar dessa maneira, destruindo minha liberdade. Confesse isso na carta que você deve escrever imediatamente, com as mais doces palavras, beijando-as logo em seguida, para que eu, ao menos, toque meus lábios onde os seus tocaram.”
Keats era um poeta pobre, que vivia com muitas dificuldades, morando junto de seu amigo, Charles Brown. Em outras cartas, antes de conhecer Fanny, podemos ver claramente como Keats dizia que queria fugir do amor. Ele não gostava de ninguém e assim queria permanecer - apenas ele e a natureza, a poesia, a arte. Era o que bastava. Mas ninguém passa incólume pela vida. Em 1818, ele conheceu Fanny e sua tranquilidade acabou.
É bem verdade que ela lhe fazia bem, que ela era tudo o que ele desejava - e, até mesmo, precisava. Eles se entendiam e se amavam. Mas um poeta pobre, sem condições de casar, e, ainda por cima, tuberculoso… que esperança ele poderia ter?
O amor foi cruel para ele por causa disso. E aqui lembro de Keats porque ele amava os mitos gregos - ele vivia numa nostalgia perpétua. Keats conhecia o mito de Pandora e sabia que a esperança era, no mínimo, ambígua. O amor, uma armadilha dos deuses.
Ainda assim, ele não pôde evitá-la.
Foi Nietzsche quem disse (e por mais que me dê uma certa agonia citá-lo nesta carta, não há muito como fugir disso) que a esperança “é, na verdade, o pior de todos os males, pois prolonga o suplício dos homens”. E amar é viver num estado de esperança.
A gente aprende a conviver com a dor do inatingível. E é justamente por ser inatingível que certas coisas tornam-se tão belas: são anseios suspensos no tempo, vivendo em uma delicada bolha de esperança atemporal. É triste e é bonito - e é nosso.
Termino esta carta mais reflexiva do que a comecei - e querendo reassistir Carol (ótima escolha para esta época do ano, não é mesmo?).
Abraço
Textos da semana
Parando um pouquinho de falar de amor para falar do que foi publicado no site do Querido Clássico durante a semana passada, seguimos com as nossas celebrações natalinas e com o aniversário de Jane Austen. Dá uma olhada:
Charles Dickens: o homem que “inventou” o Natal (Ana Júlia Neves)
Black Christmas: a primeira das noites de terror (Babi Moerbeck)
Sempre vivemos no castelo e, por isso, somos odiados (Evelyn Clen)
A Abadia de Northanger e o seu papel na defesa do romance no século XIX (Ana Clara de Menezes)
Obra de arte da semana
“Mimese” é um termo crítico e filosófico criado por Platão que engloba uma variedade de significados, incluindo a imitação e a representação do eu e do cotidiano. Para alguns, o juízo do belo pode ser invariável, quer se trate da arte bela ou da beleza natural. Tanto Platão quanto Aristóteles viam na mimese a representação do universo perceptível. Contudo para Platão toda a criação era vista como imitação, até mesmo a criação do mundo. Para ele a representação artística do mundo físico seria uma imitação de segunda mão, como muito foi discutido no livro X de A República. Aristóteles, por outro lado, desenvolveu uma percepção estética da arte valorizando a atividade imitativa por sua autonomia. A arte é para ele uma possibilidade de obter possíveis interpretações da realidade, surgindo, então, a ideia de verossimilhança, essencial ao caráter imitativo da arte. Sempre que penso em mimese, a primeira obra que me vem à mente é Moça com brinco de pérola, de Johannes Vermeer.
Vermeer nasceu na cidade de Delft, na Holanda. Era filho de um comerciante de arte e seguiu a mesma carreira do pai e foi um dos expoentes era de ouro da pintura holandesa. Sua obra, denominada “pintura de gênero”, foi dedicada às cenas da vida cotidiana, como homens trabalhando e mulheres realizando afazeres domésticos. As obras de Vermeer são caracterizadas por uma bela iluminação e personagens que estão recolhidas em si mesmas, sem suspeitar que estão sendo observadas, mantendo suas figuras distantes, criando uma atmosfera intimista e uma impressão de mistério, o que explica a importância de seu trabalho para o movimento impressionista que se expandiria pela Europa no século XIX.
Moça com brinco de pérola foi pintada por Vermeer por volta de 1665, e é, muita vezes, referida como a “Mona Lisa Holandesa”. Não há muitas informações sobre ela, principalmente sobre a modelo que posou para Vermeer, mas, mesmo com tantos mistérios, ela se tornou sua pintura mais famosa.
A obra apresenta uma bela e misteriosa moça que olha diretamente para o espectador, com os lábios entreabertos, olhar gentil e inocente. É interessante salientar que o turbante que Vermeer usou em sua modelo não era comum na pintura europeia do século XVII, e a jovem moça holandesa dificilmente seria vista usando um desses. Por isso, os estudiosos no assunto creem que o pintor encontrou sua inspiração na pintura de Michael Sweerts, Menino em um turbante, datada de cerca de dez anos antes.
Vermeer utilizou ultramarino natural para pintar a parte azul do turbante, feito de lápis-lazúli esmagado, que os contemporâneos do pintor dificilmente usavam em razão de seu preço exorbitante. Mesmo durante a época em que sua situação econômica era extremamente precária, Vermeer continuou fazendo uso do pigmento em suas pinturas, resultando em um maravilhoso tom de azul. O brinco, que tanto chama a atenção do observador, parece uma pérola branca e foi feito com uma mancha branca espessa de empasto, sobre a qual incidem os mesmos raios de luz que iluminam o rosto, o turbante e o colarinho branco da moça. Sua forma passa a sensação de peso e volume, o que não aconteceria se ele fosse redondo. Segundo estudiosos, o fundo preto da composição não possui mais sua cor original: uma análise feita na obra revelou que poderia ter sido um verde brilhante forte e profundo, destacando ainda mais a beleza da figura. A cor preta, no entanto, aumenta a sensação de tridimensionalidade da moça e a coloca ainda mais em destaque.
Por hoje, é isto.
Se cuidem e comam bastante panettone.
Abraço,
Tradução livre: “Em algum ponto do século XVI, uma garota chamada Elisabeth Danes escreveu uma ameaça nas páginas de seu livro: ‘Cá está o livro de Elisabeth danes aquele que o roubar deverá ser enforcado num gancho’. A nota aparece no final da página do manuscrito: desafiadora, um pouco provocadora, e repleta de um sentimento bibliófilo.”
Mia! Venho aqui com quase um mês de atraso, mas esse foi um mês muito louco pra mim e eu queria sentar e te responder com a calma e a atenção que a sua carta merecem <3
Já te disse que achei lindo demais tudo o que você escreveu. Eu li tomando café da manhã no dia da postagem e fiquei lá, emocionada, já de manhã. Achei incrível a forma como você desenvolveu a conversa que começa com o que escrevi sobre a troca de olhares em Carol. Acho que eu jamais pensaria em Keats e Fanny a partir do que escrevi, mas lendo você faz todo sentido.
No ano passado, assisti Brilho de uma paixão sem saber exatamente do que se tratava e me surpreendi muito com a história dos dois, mas principalmente com a de Fanny. Você já assistiu? Eu nunca li mais a fundo sobre eles, então não sei se o filme é fiel aos acontecimentos, mas gostei bastante dele. Lendo mais sobre Fanny depois, me surpreendi muito com toda a crítica que existia sobre ela e suas cartas. A história deles é muito bonita, e também muito triste, mas talvez seja cair nessa armadilha dos deuses que faça com que nos sintamos vivos, mesmo quando não há mais muito tempo para isso.
Concordo com você que a marca do sentimento está no rosto. Há algo de diferente na feição de alguém que ama, não é? A paixão arrebatadora tem as suas marcas, mas o amor (romântico ou não) que amadurece no tempo também muda os traços de alguém - há ternura, cuidado, carinho, cumplicidade. Acho que, em uma sociedade que tanto prega o individualismo como a nossa, permitir-se existir em compartilhamento é um ato de grande coragem. Ir contra aquilo que nos dizem para se importar, se permitir atravessar e transformar pelo outro em relações profundas. Agora, sempre que pensar em amor à flor da pele, vou lembrar do amor transbordando por todos os poros.
Assim como você, também fui cética quanto ao amor romântico por um bom tempo. Fui resistente, armei minhas defesas. Mas é bem isso que você falou: não passamos pela vida incólumes. Talvez o melhor de tudo seja descobrir no colo do outro justamente aquilo que buscamos. No fim, talvez a esperança seja aquilo que faz de nós o mais humanos que podemos ser - com todas as dores e também belezas, que uma vida esperançosa pode ter.
Muito obrigada por esse presente e sigo ansiosa por ler mais textos seus no futuro <3
Ps: Ainda não li nenhum livro da Patricia Highsmith, mas quero muito. Quem sabe neste ano?
<3