#24 - Eu não quero produzir conteúdo
"O for a Life of Sensations rather than of Thoughts!" (John Keats)
Querido leitor,
Como senti falta de escrever! O que é ridículo, pois escrevo todos os dias — mas senti falta, especificamente, de sentar em frente ao computador, abrir o Notion e escrever simplesmente, sem interrupções. Não sei se vocês têm acompanhado, mas houve uma onda de calor horrorosa aqui no Rio Grande do Sul — vinda diretamente da Argentina. Até há pouco, era impossível sair da frente do ventilador sem que gotas enormes de suor se formassem na superfície da pele e escorressem tal qual eu tivesse a recém saído do mar. A sensação térmica foi para 45°C — um pouco demais para o meu gosto, eu, uma criatura do inverno. Demorou para o calor começou a atenuar — a casa ainda retinha o mormaço dos dias anteriores. E o calor acabou contribuindo para que o meu computador estragasse, o que me fez deixá-lo no conserto e ficar mais dias sem conseguir escrever de fato. Então hoje é o primeiro dia em muitos em que acordei sentindo um ar fresquinho, ouvindo os pássaros, que agora podem cantar em paz à minha janela novamente, e pensando que finalmente posso escrever direito.
Eu não gosto de falar de mim mesma — o que pode parecer absurdo para quem me lê, pois meus escritos falam muito de sentimentos, e, como todos os sentimentos, subjetividades. Mas subjetividade é um ponto de vista interno que, quando externalizado, pode ser interpretado de diversas maneiras. Não é possível dizer, a partir de algo escrito num viés emocional, que os acontecimentos na vida daquela pessoa seguem uma linha reta que vai de A a B. O que acontece é que inferimos a ideia de uma vida cotidiana baseada em nossas próprias experiências pessoais e, portanto, repletas de sua própria subjetividade. A realidade da fisicalidade, todavia, é perceptível apenas para quem a vive, não para quem lê suas palavras. (Motivo pelo qual eu acho esquisitíssimo quando alguém faz leituras muito objetivas de poesia, sendo que poesia deve ser o gênero mais subjetivo existente — mas divago.)
Porém há um episódio que não me sai da cabeça — aconteceu há 12 anos aqui em Porto Alegre — e este não é subjetivo. Na época, aos 18 anos, eu estava descobrindo o mundo ao meu redor, fascinada pela ideia de que existia algo além do meu convívio familiar — eu, uma guria criada muito em casa, no meio do mato, que não tinha grandes contatos com pessoas para além das conhecidas. Era a primeira vez que eu ia a um encontro de leitores — não conhecia ninguém de lá, mas vi o convite no Orkut, chamei uma amiga para irmos juntas e lá estávamos. Eu não fazia ideia de quem eram aquelas pessoas, só sabia que elas gostavam de ler e moravam em Porto Alegre e região metropolitana, como eu. Contudo, descobri que as pessoas ali vinham de contextos bem diferentes do meu. Eram pessoas de classe média e classe média alta, para começo de conversa. E ainda havia a questão da educação: a maioria havia estudado em colégios particulares, enquanto eu a recém estava saindo do ensino médio numa escola pública que ficava ao lado de um cemitério (belíssimas manhãs lá passei lendo Álvares de Azevedo); além disso, estavam ou na faculdade ou já pensando no mestrado, enquanto eu sabia o que queria fazer, mas não havia parado para realmente pensar nas maneiras de fazê-lo ou na possibilidade real de uma faculdade até então — anos mais tarde, me tornei a primeira pessoa da minha família a ter uma graduação, mas isso ainda estava muito tempo e caminho à frente.
O encontro foi ótimo, conheci pessoas muito bacanas lá que, apesar das diferenças socioeconômicas, me receberam super bem. Mas havia um grau de estranheza — estranheza em muitos sentidos, tanto pelo fato de que aquela era a primeira vez que eu interagia de fato com um mundo que não era o meu, mas ao qual eu me sentia chamada e, de certa forma, também pertencente, quanto pela maneira como o olhar deles e o meu eram diferentes e, embora convergissem em determinados planos, não enxergavam as coisas pela mesma luz.
As conversas foram muitas e interessantes, mas uma delas sempre me faz voltar no tempo: o vestibular da UFRGS daquele ano. Era final de 2012, então a época do vestibular 2013 se aproximava e, claro, aquele era um assunto importante para várias pessoas ali. Como praticamente toda a universidade, a UFRGS tem sua lista de leituras obrigatórias para o vestibular, que muda de tantos em tantos anos. Naquele ano havia uma obra do Saramago sendo pedida. Aquilo causou polêmica no grupo, lembro bem. Estávamos divididos em 3: aqueles que não se importavam, aqueles que amaram a decisão de colocar Saramago no vestibular e aqueles que achavam um absurdo tal leitura ser cobrada. Eu observava os argumentos de todos no meu canto, pensando que, se não gerasse boas leituras, ao menos gerava entretenimento.
Contudo, a discussão começou a se acalorar e houve uma frase que me fez ficar muito pensativa e, inclusive, dar a minha opinião (o que evito sempre que possível): uma guria disse que “É um absurdo Saramago ser cobrado no vestibular sendo que muita gente que presta a prova é pobre, estuda no ensino médio de noite e trabalha de dia, aí vai ter tempo pra ler algo difícil como Saramago quando? No ônibus? Não dá. Quem é que consegue ler Saramago no ônibus? Quem é o pobre que tem tempo de ler livros difíceis? Clássico é coisa de gente rica”. Eu ouvi aquilo estupefata. Eu, uma garota pobre de 18 anos que estava terminando o ensino médio, trabalhava num restaurante quando saía da escola e passava o meu tempo de viagens em ônibus lendo. Havia, inclusive, acabado de reler A insustentável leveza do ser, do Milan Kundera. Achava Saramago divertidíssimo. Já havia lido vários dos diversos clássicos que tanto amo até hoje — já havia, inclusive, lido e relido o livro que hoje pesquiso no mestrado. Os meus almoços eram literalmente eu com um talher numa mão e um livro na outra — lembro particularmente de um almoço em que lia Papisa Joana equilibrando o calhamaço numa mão enquanto comia distraidamente com a outra quando fui repreendida à mesa por não prestar atenção à refeição, e ainda fui chamada de louca por ficar lendo sem parar. Então ouvir aquilo naquela discussão, num encontro de leitores, foi um choque. Aparentemente, só podia ser leitor quem tinha condições financeiras. Pobre não pensava em literatura. A literatura era supérflua demais para quem tinha de se virar para sobreviver.
Aquilo mexeu comigo — mexeu tanto que cá estou eu, 12 anos depois, falando disso. Lembro de ter interrompido a discussão para falar que eu estava bem ali e era uma boa representante de alguém pobre que estudava, trabalhava e lia sempre — e muito. Me chamaram de exceção e a conversa foi para outros assuntos. Mas aquilo ficou na minha cabeça — a quem se destina a literatura? Será que a literatura habita somente espaços de pessoas com muita instrução e famílias financeiramente estáveis? Será que eu era a exceção? Não, não acredito nisso. Foi aí que comecei a entender a diferença entre instrução e conhecimento. Pessoas instruídas são formalmente instruídas em uma área específica — isso não significa que elas conheçam a vida, que tenham grandes conhecimentos acerca da realidade que as rodeia ou que pensem em como essa realidade atinge, de fato, as outras pessoas — e aqui falo da vida comum, não de arte, embora possa estender a discussão para tal âmbito, pois não precisaríamos ir muito longe para saber que muitos dos grandes escritores reverenciados hoje nasceram e morreram na pobreza. Criaram algumas das obras mais lindas e sensíveis que o mundo já viu, mas provavelmente não teriam espaço nos lugares das pessoas instruídas de hoje — como John Keats, por exemplo, tido atualmente como o maior poeta do Romantismo, mas ridicularizado em seus tempos por ser pobre, não ter tido uma educação clássica, não ter aprendido grego e ter um sotaque “Cockney” ao invés do sotaque da elite britânica. Ainda assim, vejo pessoas que não entendem nada da vida de um jovem rapaz que mal tinha livros, por não poder comprá-los, mas que cuidava dos que tinha como pequenos tesouros, e que amava tanto a literatura a ponto de ter largado uma profissão respeitável e relativamente estável para a época — Keats era cirurgião e apotecário — para tornar-se poeta, vejo essas pessoas analisarem seus poemas como algo tão elevado que pessoas comuns, que andam de ônibus, não poderiam entender.
A literatura é capaz de muitas coisas — inclusive de nos ajudar a entender o outro, a desenvolver empatia, a perceber que o mundo é maior do que a nossa casa. Mas ela não vai fazer efeito se não estivermos dispostos a tirá-la do ambiente acadêmico e da presunção de que apenas aqueles que a estudam e possuem tempo e condições para tal podem senti-la.
Escrevo isto enquanto ouço Intemerata Dei Mater, composta por Johannes Ockeghem no século XV. Trata-se de um hino renascentista à Virgem Maria, belíssimo, uma prece que comove a quem a ouve, mesmo séculos depois. Eu, que mal entendo latim, me comovo ao ouvir a canção neste longínquo ano de 2024 — e eu nem sou uma pessoa religiosa. Ainda assim, a arte é capaz de atravessar tempos, lugares e fés. Não trata-se de ter a instrução devida para tal. Beleza é beleza — arte é tradução de sentimentos.
Lembro com frequência do início de O outono da Idade Média, no qual Johan Huizinga fala que jamais entenderemos o silêncio medieval — tudo quieto, exceto pelos sons naturais da vida. Não havia eletrônicos, ou mesmo eletricidade. Havia a natureza, o campo, o sono regulado pelo sol, os barulhos de vozes — humanas e não humanas —; não era o nosso silêncio, constamente interrompido por um ruído branco de tudo que nos é tão essencial hoje em dia. As horas medievais eram marcadas pelo sino da igreja — e a igreja, para além de local de religião, era também e especialmente local de congregação: era lá que as pessoas se reuniam, que o silêncio era quebrado, que a vida ganhava outros olhos de olhar novas coisas. Victor Hugo retrata bem esse congregar no início de O corcunda de Notre Dame — livro que também me comoveu em demasia por retratar um tempo tão distante, mas que me enche de um sentimento de paz e nostalgia que não sei definir para além da arte.
A população medieval não era instruída, em geral. E, ainda assim, teríamos coragem de dizer que a arte, a beleza, a natureza, a música não lhe atravessava a alma? Eu certamente não diria isso.
Todavia, a história tende a estudar apenas a arte “dos ricos”, encomendada por patronos e mecenas, ignorando a arte “dos pobres”, embora ela certamente existisse.
Dia desses, mexendo no Instagram, encontrei o arquivo de stories — que não sabia que existia. Lá, encontrei alguns stories de que não lembrava, feitos em junho de 2020, quando a pandemia nos enchia de terror. Neles, eu digo:
“2020 tá me fazendo voltar a todos os hábitos da adolescência. Trocar cartas longuíssimas com gente da internet. Passar horas vendo fotos post-mortem vitorianas. Ler quase um livro por dia. Escrever o tempo inteiro. Admitir que sou sim o tipo de pessoa que ama ouvir cânticos gregorianos no meio da madrugada (ou seja, o tipo de pessoa incorrigivelmente esquisita). Praticar caligrafia. Escrever tudo em cadernos bonitos. Voltar a praticar o canto. Desejar estudar grego, ter um piano, viver no meio do mato.
Estava conversando sobre isso. A conclusão a que chegamos foi a de que estamos vivendo num tempo sem tempo. Existe, agora, uma noção maior da mortalidade. Isso nos faz aflorar quem realmente somos quando não precisamos justificar nossas ações para o público. Porque há tempo, mas ele não é o suficiente. Estamos presos numa bolha temporal de incerteza e desespero. Nesses momentos, o primordial se destaca, especialmente se o abandonamos em algum momento para nos ajustarmos à vida em sociedade.
Eu sempre fui uma alminha atormentada que ama estar sozinha, mas não solitária; amo trocar longas cartas com as pessoas, fazer projetos de leitura e me aprofundar em assuntos estranhos, relativos à arte — tudo envolvendo uma troca de conversas, de pensamentos, de reflexões e descobertas. Ao crescer, deixei um pouco disso de lado para me ajustar ao passo do combo ‘ser uma jornalista responsável que é vista pelas pessoas sob um grau de normaldade aceitável’. Mas se há algo que o fim da faculdade, acompanhado pela pandemia, deixou claro, é que qualquer outra formação na área artística teria feito mil vezes mais sentido e que não há muito ganho em tentar me ajustar a algo que não sou. Até porque, como podemos ver, na primeira oportunidade eu volto a ser a pessoa esquisita que sempre fui porque é isso o que amo e do que senti falta. Se for para morrer (o drama), que seja fazendo o que gosto e voltando às minhas origens.”
Isso foi em junho. No mês seguinte, o QC nasceu. Voltei a escrever o que gosto. 3 anos depois, publiquei o meu primeiro livro e comecei o mestrado em Letras. Agora, estou no processo de edição do meu segundo livro, que logo será publicado. E penso que a diferença entre o jornalista e o artista é que o primeiro é curioso a respeito de muita coisa enquanto o segundo é fascinado pelo mundo que o cerca. Não é curiosidade, é fascínio e amor — e o sentimento é traduzido em arte.
Eu não quero produzir conteúdo.
Há alguns dias acordei com essa frase muito claramente ressoando em minha cabeça: eu não quero produzir conteúdo. Estou tão exausta. Não no sentido geral, nem mesmo num sentido psicológico — é uma exaustão calma, uma exaustão associada a um não querer fazer parte do movimento ensandecido que se tornou a internet de uns tempos para cá. É tudo tão angustiante — os motivos de pedidos por atenção e likes incessantes nas redes me deixam exausta — e, mais do que exausta, triste. Me sinto triste ao ver o quão facilmente vendemos o nosso tempo se nos darmos conta disso.
Faz tempo que tenho me perguntado o que estou fazendo da minha vida — o que estou fazendo nas redes sociais. Eu sou uma pessoa lenta — tal qual o Eremita, o Sentinela da Noite, ilumino uma coisa de cada vez com a minha lamparina. O todo é o mistério, e não tenho pretensões de desvendá-lo — o todo é muita coisa. Gosto de calma, silêncio e natureza. Gosto de ouvir as melodias dos pássaros e ter meus insights na hora certa. Mas as redes sociais não funcionam assim.
As redes sociais desnudam o mistério de seus mantos — porém esse desnudar é incompleto, pois o mistério só pode ser entendido dentro do mistério. Tirado de contexto, ele é apenas uma coisa bonita a qual olhamos por um minuto e seguimos em frente, sem que ele nos atravesse. O mistério precisa de tempo — e tempo é moeda de troca nas redes.
Não quero fazer do mistério um conteúdo. Me perturba a ideia de que nos transformamos em criadores de conteúdo — e cada vez mais tenho visto pessoas falando nas redes acerca de como criam conteúdo, e desculpando-se por uma frequência que não têm mais. E que conteúdos são esses? Isso é múltiplo, mas, no meu nicho, tratam-se de resenhas e recomendações literárias, majoritariamente.
Sempre tive uma visão um tanto romântica disso — e, embora a realidade se mostre diferente, sigo sendo quem eu sou e vendo as coisas da maneira como as vejo. Para mim, falamos daquilo que nos atravessa, daquilo que mexe com a gente, daquilo que vivenciamos e que nos dá algum insight. E a experiência necessita de tempo. A respeito disso, Jorge Larrosa Bondía já disse que:
“A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. […] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas no sentido de ‘estar informado’), o que consegue é que nada lhe aconteça.
[…]
Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito informado que, além disso, opina. É alguém que tem uma opinião supostamente pessoal e supostamente própria e, às vezes, supostamente crítica sobre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem informação. Para nós, a opinião, como a informação, converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogância, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o que se passa, se não tem um julgamento preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também anula nossas possibilidades de experiência, também faz com que nada nos aconteça.”
A primeira vez que li esse artigo foi há cerca de 10 anos, quando cursava Pedagogia. Desde então, ele permanece comigo. Eu não quero ter opiniões apenas porque tenho essa ou aquela informação acerca de coisas que, na maior parte das vezes, não me dizem respeito. Por que eu deveria ter uma opinião? E por que deveria emiti-la? Que tipo de poder social é esse que nos impele a manifestar nossos afetos e desagrados publicamente? Muito bem, manifestemos-nos. E então? Então é hora do próximo assunto da vez, da próxima polêmica, da próxima revolta coletiva, da próxima trend do Instagram. Não quero isso.
Em uma carta de novembro de 1817, John Keats exclama: “Ó, por uma vida de sensações ao invés de pensamentos!”. O que ele estava dizendo então era como não faz sentido que nossas certezas se deem apenas através dos pensamentos. Na carta, Keats rodeia o conceito de Tempo — o Tempo das certezas, o Tempo das opiniões. Como filósofos formam uma ideia, ele se pergunta. Me pergunto também. Mais ainda: me pergunto qual é o espaço da epifania numa época que não nos permite o tempo elástico do fazer sentimental? A epifania só pode existir se não for mecânica — a partir do momento em que o processo de formar uma opinião é encaixotado, metrificado e temporalizado, a epifania morre, e o que resta é algo vazio, repetitivo e ansioso.
Se tudo importa — e tudo é urgente —, então nada importa. Esse vazio de importâncias — essa superficialidade da existência — é angustiante. E a ideia de, enquanto pessoa que lê e, mais ainda, pessoa que escreve, ter de criar conteúdo para alimentar essa máquina devoradora de tempo é horrível.
Sempre que algo me incomoda ao ponto de eu achar que deveria falar a respeito disso, respiro fundo e examino os meus sentimentos: o que realmente está me incomodando? Geralmente, é nada — é energia compartilhada, irritação das redes sociais. Deixo o celular de lado e aquilo acabou-se. Mas às vezes é algo — e esse algo trata-se de um reflexo interno meu. Ao analisar os meus sentimentos, identifico o que me incomodou e aprendo sobre mim mesma, posso até desatar alguns nós emocionais no processo. Não preciso compartilhar aquilo com ninguém, pelo menos não publicamente. Todavia, esses dois movimentos — tanto o de constatar que não há nada para ser dito quanto o de perceber que existe algo que realmente incomoda, porém, ao ser identificado, toma outro espaço, passa por uma metamorfose — são internos e requerem tempo. Além disso, são privados. Se entrar nessa roda de opinião compulsória, não terei nem direito ao meu tempo nem privacidade para processar os meus sentimentos e entender a mim e ao que me cerca.
Eu não posso mudar o sistema e nem tenho aspirações a isso. Mas posso mudar o meu comportamento perante ele. Não preciso entrar nessa aceleração só porque o design das redes foi criado dessa forma, foi criado para fazer de nós criaturas cada vez mais rasas e aceleradas, submersas numa sociedade de informação ao invés de uma sociedade de experiências.
A experiência necessita de tempo. É impossível que algo nos atravesse sem que tenhamos tempo para vivenciar o que aconteceu.
E me pergunto: Se você soubesse, com toda a certeza, que não seria esquecido, ainda sentiria tanta necessidade de postar constantemente nas redes?
Passei alguns dias sem poder escrever — primeiro, por causa da onda de calor de que falei no início desta carta; depois, porque o meu computador havia estragado e tive de mandá-lo para o conserto. Obviamente, muitas coisas atrasaram, e agora me vejo num mar de e-mails para responder, mensagens, artigos para escrever, enfim, há muito a ser feito. Mas a vontade de escrever era tão grande — a saudade de sentar e organizar os meus pensamentos em palavras, de maneira visual — que esta é a primeira coisa que faço após ter reinstalado a maioria dos programas de volta no pc.
Quando a pandemia começou a minha saudade maior era de caminhar por horas no meio do mato. Há muita vegetação onde moro — e também na minha antiga universidade, onde me formei em Jornalismo — e passava horas simplesmente andando por entre as árvores, olhando as flores, conversando com a lua e as estrelas. Não podia fazer isso — os espaços estavam muito lotados e quase ninguém se cuidava, pelo menos não por aqui. Vivendo com os meus pais idosos com problemas de saúde, eu certamente não poderia arriscá-los — então esperei. E escrevi.
Escrever tem sido a minha forma de lidar com o mundo desde criança. É tão parte de mim quanto os meus membros — me é muito natural. Não lembro de uma época em que não tenha escrito algo constantemente. Na infância e adolescência lotava caderninhos com pensamentos, poemas, histórias, literalmente qualquer coisa que me viesse à mente. Escrever é a minha forma de organizar o mundo.
Nunca parei de escrever em caderninhos, mas o escrever tomou outras rotinas com o computador e a internet — minha dissertação está sendo escrita assim, comigo sentada em frente ao computador olhando para mil abas abertas, livros e anotações que faço ao longo do dia e que depois costuro em algo coeso. Se não escrevo fico agitada. Eu, uma pessoa tão tranquila, me vejo repentinamente inquieta. Há algo dentro de mim que quer sair e só pode fazê-lo através de palavras. É na escrita que organizo o meu mundo.
Tenho mil coisas para fazer — e vou fazê-las; na verdade, elas me trazem muita felicidade. Mas simplesmente escrever, organizar o meu mundo através da palavra, sem a pretensão de produzir conteúdo, é disso que sinto falta. A falta de caminhar no meio do mato, estar em contato com a natureza, existir enquanto natureza já está sendo lidada — toda noite saio e caminho por horas entre as árvores no caminho perto da minha casa. A vantagem de morar no meio do mato é que posso simplesmente deixar o celular em casa e contemplar o mundo tangível, aquilo que fica quando nós nos vamos: árvore, terra, céu, lua, estrelas, ar, espaço. As árvores não se importam com as redes sociais — elas não têm de criar conteúdo. E seguem lindas.
Ainda assim, escrevo. Com o tempo, percebi que escrever é uma espécie de meditação — embora eu medite de forma mais tradicional também, a escrita tem função parecida: escrevendo alivio a minha mente e contemplo o nada, o vazio, o espaço potencial daquilo que não é, mas pode vir a ser. Na escrita todas as possibilidades existem em consonância com o cosmos — e isto não é conteúdo, é paz.
Quando criei o QC a ideia era falar de clássicos de uma maneira despretensiosa para que o diálogo pudesse sair da Academia e chegasse às pessoas que, como me foi dito quando eu tinha 18 anos, não tinham tempo ou capacidade para lê-los. Mas com as redes sociais sinto que por vezes a coisa foi por outros caminhos — ainda que o cerne sempre tenha sido esse, é muito fácil ver-se enredada na lógica angustiante das redes quando se está imersa nesse compartilhamento diário. Porém isso tem me cansado — não tenho visto necessidade para tal.
Isto não é um aviso de que o QC vai acabar, de forma alguma. Mas é uma reflexão a respeito de como tenho me sentido e em qual ritmo quero andar. Não quero produzir conteúdo. É algo que já falei com as redatoras do site — não é por falta de tempo que os posts diminuíram. É porque decidi usar esse tempo para formar espaço — espaço para experiências ao invés de informação.
De que adianta eu postar todos os dias os textos enormes, maravilhosos, que as gurias escrevem e que tenho o prazer de editar se eles acabarão acumulados, pois informação não é experiência? Não quero isso. Não acho que faça bem. Acredito, inclusive, que causa ansiedade — tanto conteúdo para ler, para estar em dia, enquanto a vida é tão corrida… Para quê?
Além disso, o tempo é moeda do capitalismo. Me dar esse tempo é ir contra a roda capitalista que exige que eu seja um produto, que a minha consciência seja um produto pronto para ser feito de conteúdo em suas redes. Não quero isso.
Conforme os anos passavam, percebi que o que a guria disse em 2012 se refletia mais no tempo do que em qualquer outra coisa — e em como a visão de ter tempo para pensar, para mergulhar na arte, na literatura, para ser transpassado pelo fazer artístico, para sentir o mundo e ler um livro não apenas como um produto a ser decorado e utilizado em conversas e provas, mas como algo que realmente entra no cerne do teu ser e lá reconfigura espaços é uma visão atrelada ao tempo enquanto mercadoria. O que ela disse, afinal de contas, é que o pobre não tem tempo de existir, pois a existência é vendida ao trabalho e o lazer é dormir ou desfrutar de algo no qual não se precise pensar muito, que não seja difícil. Isso é horrível. Mas também é parte da sociedade de informação na qual vivemos — muito de tudo e tudo de nada.
O que ela disse, basicamente, é que o tempo dos sentimentos — a possibilidade real de permitir-se sentir e dar-se tempo para ter uma epifania — é privilégio das classes mais abastadas. Que a pessoa pobre é dessenssibilizada a ponto de nem ao menos compreender um sentimento que lhe atravessa ao entrar em contato com a arte. Eu entendo esse ponto de vista — 12 anos depois, o que me deixou revoltada e confusa me deixa triste, pois há, de fato, falta de incentivo às populações mais pobres em relação à arte e à existência do pensamento sensível, que só se dá através do tempo. E essa sociedade de informação, na qual somos o conteúdo, produtores e produtos, é uma forma de aceleração em massa do pensamento, de opiniões empilhadas, de esgotamento mental e de esmagamento das sensibilidades. Não é o que quero — mas é o mundo no qual vivemos.
E o que fazer com isso? Não muito. Podemos tomar ações individuais — e talvez elas transformem-se no coletivo, pois o oceano nada mais é que uma multiplicidade de gotas, como é dito em Atlas de nuvens.
Nunca tive medo de mudar de vida. Já troquei de faculdade, profissão, corte de cabelo, estilo, relacionamentos — e nunca me arrependi dessas escolhas. Acredito que os fins são sagrados e os respeito — eles não anulam tudo o que aconteceu até ali, mas podem tornar-se amargos se insistirmos em seguir numa situação que sabemos, lá no fundo, já ter acabado. Finais são sagrados e prenunciam inícios. Aprendi a confiar no universo e a respeitar os ciclos naturais. Isso não significa que eu não sinto medo, mas sim que quando o meu ego está gritando que não há tempo a perder, que preciso ser produtiva, que preciso estar constantemente produzindo, a minha alma está em paz e me diz que vai ficar tudo bem.
Eu não quero produzir conteúdo.
O que faço — a minha intenção — é um diálogo. É sentar e escrever coisas que me atravessam, e então dialogar com pessoas que também sentem isso. O mundo faz sentido quando entramos em contato com o outro — e se esse contato for apenas resumido a likes, que sentido estaremos criando? O que aqui escrevo são cartas. O que escrevo e edito no site do QC são artigos que misturam uma linguagem jornalística com a acadêmica, na pretensão de ser algo acessível para além da Academia. Mas é tudo conversa — se não houver diálogo, se não houver o elemento humano, se for tudo para atingir uma quantidade específica de números, então qual é o objetivo? Eu não quero produzir conteúdo — quero traduzir sentimentos — quero traduzir experiências.
Quero habitar o mistério — quero passear pelo Tempo.
Não estou aqui para compactar uma arte, um insight, uma vida em um reel de alguns segundos. O mistério precisa ser vivido no mistério — se nos apressarmos, perderemos o mais bonito e inefável da vida.
É isto, gente.
Como sempre, fica o convite para participarem do Clube do Livro QC; em fevereiro, estamos lendo As flores do mal. O encontro acontecerá no dia 02/03, às 16h. Para participar, basta entrar no grupo do telegram — é por lá que conversamos sobre as leituras que estamos fazendo e também é por lá que envio o link para a videochamada na qual conversaremos sobre o livro do mês.
Se quiserem, aqui está disponível a lista completa de leituras do clube em 2024.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
Mia
Obrigada. Degustei como uma experiência deve ser degustada.
Mia, vou me juntar aos outros comentários que já estão aqui e te agradecer por esse texto. Ele fala comigo de tantas formas que eu ainda nem sei como elaborar. Vai ficar aqui comigo, sendo digerido aos poucos. Tenho pensado em muitas coisas parecidas, principalmente conforme eu vou percebendo movimentos assim também com o cinema (e talvez, mais especificamente, com todo esse universo de criação de conteúdo sobre esse assunto). É isso de ir devorando uma coisa atrás da outra sem realmente dar o tempo de as coisas descerem, serem absorvidas e viver ali junto com a gente. Compartilho das angústias com a criação de conteúdo e adorei a citação do Jorge Larrosa Bondía que você acrescentou, me fez pensar em várias outras coisas aqui também. Amei demais o texto, excelente como sempre. Muito obrigada! <3