#23 - Os mistérios da Noite
"negative capability, that is, when a man is capable of being in uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason."
Querido leitor,
2023 foi um ano de fechamento de ciclo — foi o ano em que o meu retorno de Saturno acabou e, como diz a música, “e aos vinte e nove, com o retorno de Saturno, decidi começar a viver”. A música continua, ainda verdadeira: “Quando você deixou de me amar aprendi a perdoar e a pedir perdão. E vinte e nove anjos me saudaram e tive vinte e nove amigos outra vez”. Acreditando ou não em questões astrológicas, o retorno saturnino começou na pandemia e terminou no início do ano passado, quando fiz 29, seguido pelo fim daquele ciclo. Independentemente do acontecimento astrológico, a própria pandemia produziria seus efeitos no psicológico de cada um — e comigo não foi diferente. Mas após tantos anos de interiorização, um ciclo se fechou e outro iniciou — senti, durante todo 2023, as engrenagens rodando, presságios, sinais e caminhos, os quais se tornaram realidade.
Uma das últimas conversas que tive com ele foi sobre o ano que passou. Ele disse, recordo, que algo em mim havia mudado em 2023 — algo estava profundamente diferente. Que eu sempre havia sido ligada a certos mistérios, como ele disse, que sempre houve entre mim e o universo um diálogo, uma sensibilidade para enxergar a vida para além do dia a dia, mas, no ano passado, isso se tornou visível não apenas para quem me é muito próximo — se tornou visível na minha escrita.
Parei para pensar, e ele tinha razão. Esse diálogo com o universo — com o que há de intangível no mundo — existe desde que tenho memórias, porém, agora dialogo não somente com o universo, mas também com os outros — parei de sussurrar essa conversa. Se 2022 foi o ano em que parei de fugir de mim, 2023 foi o ano em que aceitei que só posso ser eu mesma, ainda que não seja perfeita. O homem — a humanidade — diz que o universo é o conjunto de corpos celestes que habitam um espaço. Também diz que existem outros, e que estamos somente num pequeno espaço perante um vasto, incomensurável multiverso. Olhamos para as estrelas sem saber se elas olham para nós, e ainda assim com elas conversamos. Buscamos beleza ao nosso redor, contemplamos a natureza e procuramos nos cercar daquilo que nos enche de entusiasmo — entusiasmo no sentido grego da palavra, “ser tocado ou preenchido por um deus”.
Não sou uma pessoa religiosa, e 2023 não mudou isso, mas me sinto mais conectada ao universo, com o diálogo ampliado. Talvez seja porque me sinto também parte da natureza, porque não vejo diferença entre pessoa, árvore, bicho, flor.
Passei a virada seguindo uma tradição minha — lendo Shakespeare. Como todas as tradições, começou como algo despretensioso — era pandemia, eu estava longe das pessoas a quem amo e queria uma boa companhia para aquela virada. Olhei para a estante e lá estava Shakespeare, um dos meus amigos mortos da infância. Não pensei duas vezes antes de pegar o livrinho e começar a lê-lo. Naquele momento, eu não sabia, mas uma tradição começava.
Nesta virada, nem precisei pensar muito — simplesmente peguei Hamlet para ler. É sempre bom retornar a esse livro, que tanto amo. Uma amiga costuma dizer que “I’m a Macbeth girl, you are a Hamlet girl”, e nada poderia ser mais verdade. Para mim, Hamlet é inesgotável. Leio e releio sua história e ela sempre conversa comigo de uma maneira diferente, mas igualmente íntima. Já me enxerguei nas dúvidas do príncipe da Dinamarca, em seus solilóquios, na forma como ele demonstra o luto e na maneira como escolhe lidar com uma situação impossível. Também já me enxerguei em Ofélia, em suas angústias, seu amor, sua entrega à tristeza ao se deparar com um mundo em que não há para onde correr. Nesta releitura, me enxerguei em um personagem não-vivo, mas, ainda assim, presente em toda a obra: o espaço liminar.
Escrevo isto e procuro a definição de espaço liminar, para não inventar moda, quando me deparo com o seguinte: “liminar vem do latim ‘limen’, que significa limite”. No original, a frase é “Liminal is from the Latin word ‘limen’, which means threshold”. Paro e dou uma boa risada pois, há poucos dias, estava eu fazendo uma leitura de tarot quando a taróloga, a quem desconheço e que nem é deste país, diz que o “threshold”, o meu limite ao qual devo encarar neste ano de 2024, que, uma vez aceito, vivido e cruzado, me permitirá transformar-me em quem eu sou para além de quem já fui, esta mesma palavra utilizada na definição de espaço liminar que traduzi ainda agora, é representado por Eros. Eros, o deus que me vem aparecendo em todos os cantos, não importa para onde eu olhe. Corro de Eros e ele a mim vem, num movimento fuga-desejo que me envolve. Corro do amor e de mim ele se aproxima — Eros me espreita a cada canto, como disse ainda semana passada a uma amiga. É ele o meu espaço liminar.
“Threshold” também pode ser entendido como soleira, entrada no limiar de um espaço e outro. No Cambridge Dictionary, um de seus significados é “o ponto em que você começa a vivenciar algo, ou em que algo começa a acontecer ou mudar”.
Hamlet encontra-se nesse limite — seu conflito é o conflito de alguém num espaço liminar. E não apenas ele: a própria atmosfera de Elsinore é liminar — o fantasma somente aparece à noite, e se vai com o anunciar da madrugada e a hora sagrada. A morte do rei dá lugar a outro reinado, mas seu irmão, ao conspirar para assassinar o rei e tomar o trono, impede que o novo — o mundo renascentista, representado pelo jovem Hamlet — venha. Quando se impede o novo, o velho apodrece, infectando a todos ao redor até que a morte é a única palavra a dar sentido.
Muitas religiões têm como um de seus princípios a Noite Escura da Alma. No século XVI, o poeta São João da Cruz escreveu Noche oscura, poema que fala da travessia na noite escura à procura do Amado — um ser divino no poema, mas interpretemos isto de maneira a entendermos este Amado tanto como divino quanto como sagrado, lembrando que o que nos é sagrado é extremamente íntimo, pessoal e não necessariamente ligado a algo religioso. A Noite Escura, entretanto, é um conceito existente em diversas culturas e tempos — o momento em que nos encontramos num espaço liminar no qual, embora conheçamos a possibilidade de um futuro repleto de amor, olhamos para trás e duvidamos da jornada, acreditando não haver nada concreto à frente a não ser a incerteza que acompanha a noite escura.
“Na noite ditosa,
em segredo, que ninguém me via,
nem eu nada olhava,
sem outra luz e guia
senão a que no coração ardia.
Só esta me guiava
Mais certa que a luz do meio-dia
onde me esperava
quem eu bem sabia,
em lugar onde ninguém aparecia.
Oh noite, que guiaste!
Oh noite, amável mais que a alvorada!
Oh noite que juntaste
Amado com amada,
Amada no Amado transformada!”
(Noche oscura, de São João da Cruz,
na tradução de Antoniel Batista dos Santos e Maria Goretti Ribeiro)
Não sou uma pessoa religiosa, mas sou uma mulher que acredita na existência de mistérios — que, para falar a verdade, não considero tão misteriosos assim. Nos apegamos ao símbolo porque não conseguimos compreender a simplicidade do real — o divino, para mim, está no vento que acaricia as árvores, nos pássaros que cantam à minha janela, na chuva que lava a terra, na planta que busca o sol. Toda a natureza é expressão de magia — a magia da vida. E o que há de mais belo que isso?
Se o belo é o que nos aproxima do estado de entusiasmo — do êxtase, religioso ou não, de ser tocado pelo divino —, então a natureza é a guardiã dos mistérios, e nós, os tradutores de sua beleza em símbolo, religião e fé. Ainda mais sagrado, neste sentido, são os sentimentos que carregamos, que nos atravessam, as relações que temos com o Outro — seja este nosso amigo ou desconhecido. A gentileza é sagrada — o amor é sagrado. E o sagrado nos assusta, pois acreditamos que precisamos mudar, nos tornar melhores, dignos, para chegar perto dele — esquecendo que somos, também, parte dos mistérios da natureza. Nossa Noite Escura é tão intrínseca a nós quanto o ar que respiramos. Buscamos o símbolo porque a simplicidade nos quebra — a simplicidade implica que já estamos prontos, que já estamos aqui, que podemos simplesmente atravessar o espaço liminar e tocar no sagrado, viver a beleza, sentir o amor.
Retorno a Eros — o amor continua. A Noite Escura da Alma, sorrio ao constatar, pode ser comparada a Eros e Psiquê. Ela, que passou pelo Hades em seu desafio para encontrar o amado, para encontrar o amor; ele, que representa o próprio amor, o deus do desejo. Mas antes de ir às profundezas, ela não suportou a escuridão: ainda que feliz nos braços do amado, estar com ele sem poder enxergá-lo era demais, já que todos lhe diziam que ela deveria saber exatamente quem ele era, descortinar os mistérios, arrastar o sol para a noite escura. Fazendo isso, traindo o amor e a confiança de Eros, ela teve a verdade antes do tempo, antes do momento de entender tais verdades, de vivenciar plenamente o amor que era seu. Dessa forma, apressando o amor cuja existência ainda não poderia ser vivida à luz do sol, ela foi para longe. Para encontrar Eros novamente, Psiquê teve de descer ao Hades e de lá trazer um pouco da beleza de Perséfone — numa tarefa impossível, ela de lá só saiu porque Eros a resgatou, guiando-na para fora da Noite Escura.
Quando tentamos fugir da escuridão, do nosso espaço liminar, muitas vezes encontramos verdades que ainda não podemos viver. Isto, além de angústia, nos faz ter de retomar a jornada — e o medo de não conseguir completá-la muitas vezes faz parecer que a Noite Escura é um abismo infinito, quando ela é uma floresta cheia de vida na qual descobrimos a nós mesmos através do amor. Psiquê, na mitologia grega, é a personificação da alma. Não é à toa, portanto, que ela teve de passar pela Noite Escura para alcançar o amor.
Como dito no artigo “A ‘noite escura da alma’ no labirinto do ser poético”: “Fortes e enigmáticas são as energias eróticas que despertam a receptividade, a sensibilidade, a eloquência, a sabedoria, o dom da profecia, a euforia da criação, a sensibilidade à natureza e a capacidade de amar. Eros implica entrelaçamento amoroso, necessidade de uma relação profunda com o Outro, de envolvimento emocional totalizante, de compromisso e vínculo afetivo. Eros é a capacidade de viver e de se apaixonar, de abraçar o lado Sombra da personalidade, de alargar o campo da consciência e da percepção, de declinar para abstrações e ideologias. Eros revela o fascínio pela beleza, pela perfeição e proporciona o impulso à ação transformadora”.
Os mistérios da noite são profundos e nos convidam a olhar dentro de nossa alma. A noite, seu céu um espelho infinito, sussurra melodias e encantamentos, canções de sabedoria e conhecimento. Ao mergulharmos no céu noturno somos também parte do tecido da noite — seu delicado tear é a matéria de onde partirmos e para onde tornaremos. Olhar a noite é olhar o infinito, é olhar quem somos, é lembrar que habitamos um espaço, mas também somos espaço. Cantando canções de encantamento, somos seduzidos pela noite e seus mistérios.
Quando penso no tempo, me vejo caminhando por uma estreita estrada de estrelas negras que conectam a Terra à eternidade. Nela, em sua fina teia de brilho sombrio, o tempo não é medido por dias e meses, mas sim por eventos e ciclos. Caminho de um para outro na escuridão do espaço que habita e é habitado pelo Tempo. A travessia é escura — não sei se meus pés encontrarão chão naquelas estrelas sombrias, posso apenas caminhar e confiar que estou indo a algum lugar. Há apenas uma direção, a direção do Tempo, e seu infinito de dias não representa nada perante a eternidade. Meu vestido farfalha na teia soturna e passo de um ciclo a outro confiando que as horas entre os eventos significativos em minha vida serão amparadas pela malha invisível do guardião de grave timbre. Caminho por entre mistérios e a estrada é tão infinita, o espaço é tão escuro, que não sei para onde estou indo. Mas como mortal, só me resta mover-me no Tempo e confiar em seus caminhos.
“Assim que você começa a caminhar, o caminho aparece.”
(Rumi)
Não acredito em resoluções no sentido de listas — embora ame listas, o Tempo é repleto de curvas, e certamente não podemos nos restringir ao caminhar por suas dobras. Mas nesta virada, fechei os olhos e fiz uma prece — uma prece evocando as palavras de John Keats quando escreveu acerca da “negative capability”, a capacidade negativa que, segundo ele, Shakespeare possuía, e consiste em “estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem perseguir irritantemente fatos e razões”. Quero aceitar o mistério — não quero lutar contra a Noite Escura. Ela, embora assustadora, também tem seu propósito — é na Noite Escura que aguçamos os sentidos, que ampliamos a visão, que aprendemos a ouvir, que somos guiados não pelo que vemos, mas pelo que sentimos. Quero olhar os presságios do que está por vir sem a necessidade de buscar fatos e razões que corroborem aquilo que sinto. Quero sentir os meus sentimentos, não quero correr do amor, não quero correr daquilo que desconheço. Quero saudar a Noite como companheira, estar em harmonia com o presente sabendo que o futuro, o que está por vir, continuará lá sem que eu precise correr para alcançá-lo, sem que precise temer nunca habitá-lo.
A Noite Escura é um tempo de descobertas — e o que tu descobres quando andas em ti mesmo, quando pisas no teu destino?
“Os mistérios da Noite são definitivos. Certezas são aquilo que acontece quando o sol nasce. Saber o que significa a noite é saber o que evita ser conhecido em detrimento do que pode ser vagamente lembrado. Giacomo Leopardi, em seu Zibaldone, afirma que o mistério empresta à noite sua natureza poética. ‘Notte’, como ele escreve a palavra noite, ‘confunde objetos de modo que a mente é capaz apenas de conceber uma imagem vaga, indistinta, incompleta, tanto da noite quanto de qualquer coisa que ela contém.’ Conhecer a noite se parece muito com conhecer poesia, e conhecer poesia demanda o que Keats chamou de ‘capacidade negativa’, a capacidade de ‘estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem perseguir irritantemente fatos e razões’. Conhecer a noite significa ter a clareza de que algumas coisas são e devem ser e sempre deverão estar escondidas, porque a noite tem sido, ou é, ou sempre foi, o momento dos apaixonados, dos revolucionários, e de outros conspiradores. O mundo noturno é aquele que deveria ser, ou que foi desde o princípio, velado.”
(Anne Boyer, The Fall of Night)
A Noite Escura nos deixa ansiosos porque somos ensinados a estar sempre em movimento, sempre em controle — e este é um movimento que não controlamos. No escuro, não sabemos ao certo o quanto caminhamos. Mas a caminhada é sussurrada pelo vento, que muda de direção, pelas folhas que sentimos nos pés, partindo-se a cada passo. Estar na Noite Escura requisita confiar nos mistérios e não apressar a passagem — mesmo a escuridão é parte do universo, e se os terrores noturnos assustam é porque ainda acreditamos que há vida somente na luz.
Dia desses, em aula, escrevi em meu caderno uma frase que me atravessou num insight inesperado, um daqueles momentos de compreensão em que o universo parece claro e sentimos que há um propósito maior na vida: “cada um está voltando aos seus lugares no tempo”. Sinto que estou voltando ao meu. Que eu não apresse a travessia — que a noite me seja amiga.
Não sei o que esperar para 2024, mas sei que estou no meu caminho — e isto me basta.
“Voltando (porque tua volta sinto-a num presságio)
acenderei luzes na minha porta e falaremos só o necessário.
Terás pão e vinho sobre a mesa.
Virás acabrunhado (quem sabe) como o filho que retorna.
Nesse dia, a lamparina de teu quarto
deixarás que fique acesa a noite inteira.
O amor sobrevive.
E seremos talvez amor e morte ao mesmo tempo.”
(Hilda Hilst)
Melhores leituras 2023
Fiz um post no instagram falando quais foram os livros que mais me marcaram no ano passado — mas não expliquei o porquê, apenas fiz uma lista. Gosto de pensar sobre as leituras do ano, então resolvi trazer aqui um breve comentário sobre estes livros, que fizeram do meu 2023 melhor:
📚 Cartas a um jovem poeta
(Rainer Maria Rilke, tradução: Claudia Dornbusch)
Este foi o primeiro livro que li em 2023 — sempre quis ler Cartas a um jovem poeta, mas ainda não havia acontecido. Então a editora Planeta fez a gentileza de me enviar a nova edição deles, que conta também com a tradução inédita das cartas que o jovem poeta, Franz Xaver Kappus, escreveu a Rilke, pedindo pelos conselhos do poeta mais velho. Eu certamente não estava pensando, ao iniciar o ano, que aquele seria o ano em que publicaria o meu primeiro livro — de poesia —, mas as respostas de Rilke me emocionaram, me fizeram pensar sobre o que é estar em um mundo embrutecido que não possui espaço para a poesia, para a arte, para o amor e a beleza num sentido mais profundo. Quando as relações são capitalizadas, não sabemos o que fazer com o amor. E talvez seja tarefa do poeta — do artista — criar esse espaço no qual os sentimentos são não apenas importantes como centrais. É um livro lindíssimo — amo cartas, e estas são especiais. Já escrevi sobre a amizade romântica de Rilke e Kappus lá no site, e sigo recomendando esse livro para todos.
“O senhor olha para fora e é justamente isso que o senhor não deveria fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Olhe para dentro de si mesmo. Explore a motivação profunda que o impele a escrever, verifique se no ponto mais profundo de seu coração ela estende suas raízes, confesse para si mesmo se o senhor morreria se o impedissem de escrever. E, principalmente, pergunte-se na hora mais silenciosa da noite: eu preciso escrever? Cave fundo em si mesmo em busca de uma resposta profunda. E se esta for de concordância quando o senhor responder com um forte e simples ‘Eu preciso’ a essa séria pergunta, então construa a sua vida de acordo com essa necessidade; a sua vida, até a hora mais indiferente e mínima, precisa se tornar signo e testemunho dessa pulsão.”
📚 Antígona
(Sófocles, tradução: Lawrence Flores Pereira)
Recebi este livro da Companhia das Letras em janeiro de 2023, mas senti que ainda não era hora de lê-lo. Já conhecia Antígona, mas esta nova edição possui belíssimos textos de apoio e notas que acrescentam muito à leitura, e queria fazê-la no momento certo. O momento certo chegou em março do ano passado — e de março a abril dediquei-me à leitura atenta dessa tragédia grega. Além de ser uma história incrível, uma de minhas peças favoritas, certamente, os textos de apoio da edição me deram o insight — aquele momento de atravessamento emocional — que me levaram à ideia do meu projeto de pesquisa para o mestrado, que agora tornou-se pesquisa de fato. Portanto, esta me foi uma leitura importante por alguns motivos — além de ser um livro maravilhoso, também foi o catalisador do que agora pesquiso. Acredito que cada leitura possui seu tempo, e fico feliz por ter ouvido a minha intuição e tê-la feito na hora certa. Também já escrevi sobre a peça lá no site.
“ANTÍGONA: Não vou mais te exortar. Mesmo que tu quisesses
ainda agir, tua ajuda não me agradaria.
Vai com teu pensamento, que eu o enterrarei.
Quando eu o honrar assim, vai ser belo morrer,
jazer junto ao amado, eu, a sua amada,
numa perversão sagrada. Aqueles lá embaixo
mais tempo terei de agradá-los que os daqui.
Lá vou estar para sempre. Se é assim que tu pensas,
não esqueças que desonras o que os deuses honram.”
📚 As brumas de Avalon
(Marion Zimmer Bradley, tradução: Marina Della Valle)
Li esse livro pela primeira vez em 2013 e me senti profundamente conectada com ele. Não apenas por ser uma fantasia muito bem escrita, nem por tratar-se de um reconto das lendas arturianas (a minha estante com mais de 30 livros sobre as lendas arturianas já diz o quanto amo tudo relacionado a isso), mas há algo nele que mexe comigo de maneira muito pessoal. Fiz a releitura de As brumas de Avalon em 2015, e, agora, no ano passado. Li as quase mil páginas desse livro em abril, quando estava doente, de cama. Lembro que era Noite de Walpurgis quando finalizei a leitura, e talvez fosse o momento ou talvez tivesse realmente algo no ar, mas foi uma experiência quase mística. Sinto que a releitura aconteceu na hora certa — embora seja uma história de ficção, havia ali coisas que eu precisava ler, das quais precisava lembrar. É uma leitura tão pessoal para mim que, em 10 anos de leituras e releituras, ainda não consegui escrever sobre esse livro.
“— Sempre soube, creio, que vivi antes... parece-me que a vida é algo muito grandioso para ser vivida apenas uma vez e então se apagar como uma lamparina quando o vento sopra. E por que, quando olhei para seu rosto pela primeira vez, senti que a havia conhecido antes que o mundo fosse feito?”
📚 O homem da areia
(E.T.A. Hoffmann, tradução: José Feres Sabino; Marcella Marino M. Silva)
Nunca havia lido nada do Hoffmann quando a editora Ubu entrou em contato me oferecendo esse livro, lançamento deles numa edição belíssima com ilustrações assustadoras. Li o livro em cerca de 1h, antes de dormir, e fiquei completamente obcecada — o que Hoffmann conseguiu fazer nessa história tão curta é algo que realmente se destaca, uma verdadeira obra-prima. Ainda voltarei muitas vezes a essa leitura, certamente. Já escrevi sobre ele e sua ligação com a Olympia de Édouard Manet lá no site.
“Pressentimentos obscuros de uma terrível sina iminente pairavam sobre mim como nuvens negras, impenetráveis a qualquer raio de sol benfazejo. Agora devo contar o que me aconteceu. Tenho de fazê-lo, eu sei, mas só de pensar já começo a rir de nervoso.”
📚 Inana: antes da poesia ser palavra era mulher
(Enheduana, tradução: Guilherme Gontijo Flores; Adriano Scandolara)
Havia sonhado com uma sacerdotisa na Babilônia na noite anterior. Ao acordar e abrir o instagram, a primeira coisa que vi foi um post falando sobre Enheduana e a edição desse livro, Inana — soube que era caminho do destino lê-lo. Enheduana é considerada a primeira autora da história — foi a primeira pessoa, independentemente de gênero, a registrar seu nome em um escrito literário. Não há na literatura algo mais clássico que isso, portanto. O longo poema é uma exaltação a Inana, a deusa que ajudou Enheduana quando ela foi expulsa do templo onde servia como alta sacerdotisa em um golpe que tomou o poder. O poema é lindo, mas, para além disso, me emocionei profundamente ao ouvir a voz daquela mulher que viveu há tantos milênios antes de Cristo e que, ainda assim, fala conosco hoje.
“No sagrado Gipar.........
penetrei no teu serviço
eu sacerdotisa En.........
eu Enheduana
trazendo o cesto ritual.........
eu entoei um canto de alegria”
📚 Oréstia
(Ésquilo, tradução: Mário da Gama Kury)
Comecei um projeto com algumas amigas que consiste em lermos os gregos. Já conhecia a Oréstia, mas essa releitura foi maravilhosa, pois, além de conjunta, me fez aproximar mais das minhas amigas e também da figura de Cassandra, uma das minhas personagens preferidas desde sempre. Além disso, ler os clássicos da Antiguidade sempre me emociona — é como viajar no tempo, olhar para algo que já passou e pensar, neste sentido, em como somos efêmeros, mas como a arte permanece.
“CORIFEU: És corajosa! Não te abate a desventura.
CASSANDRA: Tais elogios não ouve quem é feliz...”
📚 Eros, o Doce-Amargo
(Anne Carson, tradução: Julia Raiz)
Gosto muito da Anne Carson, de seus poemas especialmente, mas em março senti que era para ler esse livro — me atravessou aquela sensação peculiar de quando sentimos um livro nos chamar. Passei meses fazendo essa leitura porque, embora seja um livro pequeno, a cada capítulo eu deixava o livro num canto e ficava pensando acerca do que havia lido. Obviamente, para qualquer um que lê o que escrevo nesta newsletter, Eros tem sido um companheiro constante por aqui, e não é à toa. Esse livro é maravilhoso não apenas para quem estuda os clássicos da Antiguidade, mas também para quem sente os ventos suaves do amor aproximando-se.
A experiência de eros é um estudo das ambiguidades do tempo. Quem ama está sempre esperando. Odeia esperar; ama esperar. Presas entre esses dois sentimentos, as pessoas que amam começam a pensar muito sobre o tempo, e a compreendê-lo muito bem, de uma maneira perversa.
É isto, gente.
Como sempre, fica o convite para participarem do Clube do Livro QC; em janeiro, estamos lendo Dom Casmurro. O encontro acontecerá no dia 03/02, às 16h — geralmente, acontece todo último sábado do mês, mas é meu aniversário dia 26/01, então deixei o nosso encontro para fevereiro. Para participar, basta entrar no grupo do telegram — é por lá que conversamos sobre as leituras que estamos fazendo e também é por lá que envio o link para a videochamada na qual conversaremos sobre o livro do mês.
Se quiserem, aqui está disponível a lista completa de leituras do clube em 2024.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
Mia
Eu amei este texto, Mia! Feliz de te encontrar aqui no Substack - não conhecia tua newsletter ainda, apesar de te acompanhar no Insta.
Tu me deixou com vontade de ler Shakeaspere de novo. Faz muito tempo que não leio ele, e acho que me conectaria de forma totalmente diferente hoje. Inclusive, ano passado, uma das minhas melhores leituras foi Hamnet, da Maggie O'Farrell, acho que tu já deve ter ouvido falar :)
E adorei a lista das melhores leituras de 2023. Amo o "Cartas a um Jovem Poeta", é um livrinho reconfortante, e li pela primeira vez "As Brumas de Avalon" ano passado (e amei).
E olha a sincronicidade: tô querendo reler Dom Casmurro. Acho que tenho a deixa perfeita agora, só não sei se consigo finalizar a tempo do encontro do grupo. Mas vou ficar de olho nas próximas leituras de vocês :)
Mia você não sabe o quão reconfortante foi ler esse texto, estou num processo de mudança de ares, vou entrar no mestrado e talvez realizar vários projetos dos meus sonhos (para além do mestrado), mas mesmo assim eu ando com medo, é como uma nova fase da minha vida e sinto o medo do desconhecido, medo de andar na noite escura... Vejo agora que preciso disso mais do que nunca para encontrar meu caminho. <3