#8 - O destino e aquilo que nos é sagrado
antígona, a grécia antiga, rainer maria rilke, um retorno ao mundo dos vivos e a arte e as problemáticas dos bestiários do século XVI
Querido leitor,
Editar é algo esquisito.
Uma das primeiras coisas a que nos aventuramos no jornalismo - pelo menos, na PUCRS - é a arte da edição de textos. Existem alguns motivos para isso. Um deles é que o jornalista precisa ter senso crítico; entender que seu texto - aliás, texto algum - não é perfeito e definitivo em sua primeira escrita, e não ter dó na hora de cortar, mexer, reescrever. Parece fá-cil, mas é di-fí-cil. Editar envolve um grande exercício de distanciamento do texto - distanciamento este que, muitas vezes, requer um tempo que não temos -, assim como autoconhecimento, repertório cultural, entendimento da composição textual e uma certa liberdade criativa - o que se pode ter ou não, dependendo da publicação na qual você estiver editando. Ter esse distanciamento nem sempre é simples, porque editar é algo pessoal.
Abro esta edição da newsletter dizendo isto porque eu sou a editora do Querido Clássico. Antes disso, editei uma coisa aqui, outra acolá, mas o QC é o Meu Projeto Pessoal, que nasceu muito antes de existir para os outros - em sonhos, em ideias, na vontade que eu tinha de conversar sobre clássicos e história, algo que sempre me fascinou. Então, meu envolvimento com tudo o que é publicado no QC acaba sendo muito pessoal também. Cada texto passa por mim. Não existe um só texto no site ou post nas redes que não tenha sido editado por mim e mexido de muitas formas até sua publicação - alguns teóricos do texto dizem que editar é uma espécie de coautoria, e embora eu não chegue tão longe nesse pensamento, acredito que isso faz algum sentido, porque quem edita cuida do texto, lê, relê, pensa nele, reescreve uma coisa ou outra, conversa com a pessoa que o escreveu, dá sugestões, enfim, se mete no texto, o que só torna tudo ainda mais pessoal. Dado o fato de que o QC existe há 2 anos e pouco, e eu tenho editado tudo nele, desde os textos até as artes, diariamente, e editei e publiquei quase 600 textos nesse período, se você pensar que isso é exaustivo, você estará corretíssimo. Editar é um trabalho invisível - e, por isso, a exaustão que ele causa, especialmente quando não estamos bem, é algo que pode passar desapercebido. Mas como tudo o que nos é pessoal, embora exaustivo, é algo que eu amo. Por isso, os primeiros meses deste ano têm sido tão difíceis para mim.
Faz muito tempo que eu não escrevo na newsletter - e, durante algumas semanas, nem ao menos editei ou publiquei textos no site do Querido Clássico. Isso porque fiquei doente. Quando dizemos para as pessoas que estamos doentes, elas imediatamente pensam que trata-se de algo como uma gripe ou coisa do tipo, cuja melhora costuma ser rápida. Mas não foi esse o caso. Toda a carga emocional do luto que aconteceu no final do ano passado, mais os (vários) estresses no início deste ano me agravaram as condições de saúde, que já não estavam das melhores, pois endometriose/ síndrome do ovário policístico (ser mulher, sempre uma aventura), e o fato é que fiquei meses doente por causa dessas coisas, tendo de fazer tratamentos e ficar off da internet por um tempo para poder me cuidar. Não foi algo fácil. Além de estar fisicamente doente, também estava exausta, emocionalmente esgotada e ansiosa a respeito de todas as coisas que eu tinha de fazer, mas não podia, não naquele momento.
Eu sempre fui alguém que faz muitas coisas - o meu dia sempre foi ocupado por diversas atividades e muitas responsabilidades -, então estar parada e não conseguir realizar as tarefas a que eu me comprometi me deixou ainda mais ansiosa. Foi necessário chegar num ponto em que tanto a saúde física quanto a mental disseram “basta” para que eu largasse tudo de mão e me cuidasse. Como é dito por Sherlock na série homônima: “O estresse pode arruinar todos os dias da sua vida. Morrer arruína apenas um”. Vamos guardar esse um mais para frente. Sendo a única pessoa responsável pelo QC - a única editora, revisora, colagista etc. -, e tendo uma relação tão pessoal com isso, pois é algo que eu realmente adoro e do qual participo de cada etapa, sabendo que as gurias que escrevem esperavam por mim para organizar tudo, dar respostas, aprovar pautas, resolver questões… Foi exaustivo. Fico feliz por ter conseguido me livrar de situações e pessoas que apenas me causavam estresse e pioravam a minha saúde física e mental - só assim consegui me recuperar. Mas ainda estou fraca - tudo isso me afetou tanto, especialmente a doença e tratamento prolongados, que à primeira gripe, que peguei há duas semanas, consegui a proeza de desenvolver uma pneumonia, da qual estou me recuperando. Pelo menos, estou melhor o suficiente para escrever - estava com saudade disso.
Mas todo esse prólogo foi para dizer que estamos de volta - talvez eu tenha de ir mais devagar em alguns momentos, pois fiquei realmente fraca com tudo o que aconteceu. Porém tudo isso também me lembrou do quanto amo fazer o que faço, o quanto isso é importante para mim, e me fez recuperar a alegria de escrever e pesquisar e falar sobre as coisas que me fascinam. Me lembrou de que se criei este espaço e faço tudo isso, ainda que seja um trabalho invisível, é porque amo e acredito no que faço, na arte, na divulgação de conhecimento e no diálogo com tanta gente incrível que passa pelo meu caminho nessas andanças da escrita e da troca de fascinação pela arte e pela história. Me fez olhar para dentro de mim e para o que é sagrado para mim — para quem eu sou além de toda a correria do dia a dia.
“Nós lançamos uma sombra sobre algo independentemente de onde estivermos, e de nada adianta movermo-nos de um lugar a outro para poupar as coisas; porque a sombra sempre nos persegue. Escolha um lugar onde não causará dano… Sim, escolha um lugar onde não causará muito dano, e fique ali com toda a alma, encarando o sol.”
— Um quarto com vista, de E. M. Forster
Acho que a grande lição dessa temporada - se é que há uma - é que a gente faz o que pode. Não podemos, afinal de contas, fazer mais do que o que está ao nosso alcance. Se tentarmos, o destino, tal qual nas tragédias gregas, estabelecerá uma linha de ação - que provavelmente não nos deixará muito felizes - até que voltemos a quem somos e aceitemos nossas limitações.
“Fate
Up against your will
Through the thick and thin
He will wait until
You give yourself to him”
Não li muitas coisas durante esses meses - você sabe que não está bem quando não consegue ter ânimo nem ao menos para ler um livro -, mas tenho retomado minhas leituras de um mês para cá. E essas leituras têm sido muito voltadas à Grécia antiga. Li Antígona, peça de Sófocles, e fiquei completamente absorvida pelo enredo e pelas possibilidades de interpretação. Embora a história seja mais interpretada pelo viés do direito, o que eu enxerguei nela foi algo profundamente religioso - sobre destino, sobre os deuses e sobre o ego humano, que toma emprestadas desculpas para cometer as maiores atrocidades em nome do sagrado.
E o que é sagrado? Aquilo que é tocado pelo divino? Talvez - embora eu acredite que a noção de sagrado é dual, sendo pública e privada ao mesmo tempo. Publicamente, temos a esfera do que a sociedade, durante séculos, consagrou como sagrado - as questões religiosas tomam o centro do palco nesse aspecto, mas também ali encontra-se família, por exemplo. Já numa esfera privada, o que nos é sagrado é pessoal - pode estar de acordo com o alicerçado socialmente, mas não é uma obrigatoriedade.
Para Antígona, o sagrado estava alinhado aos deuses ínferos, à honra e ao amor que sentia por seu irmão, morto em combate e envergonhado como um traidor de Tebas. Para mim, o sagrado está alinhado à arte. Como disse Rainer Maria Rilke, “As coisas não são todas tão palpáveis e dizíveis como normalmente querem nos fazer crer; a maioria dos acontecimentos é indizível, acontece em um espaço que nunca foi visitado por uma palavra, e mais indizíveis que tudo são as obras de arte, essas existências misteriosas cuja vida é perene, ao lado da nossa, que é perecível”. Enquanto nossa existência não passa de uma gota na superfície da água, a arte é o oceano que perpassa gerações. “Porém o que é o oceano senão uma multidão de gotas d’água?”
Aquilo que nos é sagrado encontra-se onde está o nosso coração.
Textos da semana
Entre a obscuridade e o prestígio: a dualidade de Elizabeth Gaskell (Ket Santos)
Cartas a um jovem poeta: a amizade romântica de Rilke e Kappus (Mia Sodré)
O imaginário alienígena em Além da Imaginação (1959-1964) (Victória Haydée)
Castelos: um elo entre a vida e ficção (Elisa Silveira)
Por que A Viagem de Chihiro é um clássico? (Giulia Benincasa)
Obra de arte da semana
Durante a Idade Média, o bestiário se tornou um gênero literário muito popular. Nele eram catalogados desde seres fantásticos até animais exóticos. O Livro dos Seres Imaginários, do escritor argentino Jorge Luis Borges, publicado pela primeira vez em 1957, com o nome de Manual de Zoologia Fantástica, é um exemplo contemporâneo do que foi o bestiário. Em 1967, uma segunda edição foi publicada com o título modificado para “El Libro de Los Seres Imaginários”, nome adotado desde então. O texto também passou por alterações, como o prólogo e o acréscimo de números de animais. Atualmente, o livro possui a descrição de 116 seres fantásticos, e o texto também se insere em uma releitura, pois se reinventa em cada edição, deixando de lado a ideia de uma simples catalogação e mergulhando no imaginário coletivo e no realismo mágico latino-americano.
Durante a época das navegações, a França fixou colônia no Brasil no Estado do Rio de Janeiro, na região da baia de Guanabara, e este período histórico ficou conhecido como França Antártica. André Thevet foi um frade francês e explorador, que durante sua passagem pelo Brasil escreveu e ilustrou um livro chamado As singularidades da França Antártica. Seu livro é também um tipo de bestiário, pondo em evidência a existência de seres fantásticos, que ele afirma efetivamente ter visto durante suas viagens pelas Américas, como dragões e unicórnios. Mas não eram apenas os seres fantásticos que possuíam um protagonismo nos relatos sobre o Novo Mundo. Assim como seus habitantes eram considerados selvagens pelos europeus, animais naturais da fauna brasileira também eram vistos com estranhamento, e um desses animais foi a preguiça.
As preguiças gigantes de fato existiram e ainda há muitos fósseis preservados desses adoráveis monstrinhos. E sim, elas habitaram o território brasileiro, mas foram instintas há mais de 10 mil anos. Então, por motivos óbvios, não deveria ser possível que o público as visse no século XVI. Mas a parte mais interessante dos relatos de André Thevet é que ele de fato desenha e descreve um animal da megafauna pré-histórica brasileira como se o tivesse visto parado em sua frente:
“Quem nunca o viu, certamente vai achar essa descrição inacreditável [...] É do tamanho de um mono africano adulto, apresenta uma barriga tão grande que chega quase a se arrastar no chão. A cabeça lembra a de uma criança assim como também a cara [...] Quando preso, fica suspirando como uma criança que sente dores. Sua pele é cinza e felpuda como a de um ursinho. Tem patas compridas, cada uma com quatro dedos, três desses com unhas com as quais trepa nas árvores onde fica mais tempo que em terra. Quase não tem pelos na cauda. Outra coisa realmente notável, é que pessoa alguma jamais viu esse bicho se alimentando nem mesmo os selvagens [...] Vigiando-o pelo espaço de 26 dias pude constatar que ele não quis nem comer e nem beber.”
É claro que associar animais da fauna das Américas a monstros é um assunto complexo. Porque além do caráter etnocêntrico, há questões ligadas à ordem teológica. E tal associação, seja dos animais americanos ou de seus habitantes, ao monstruoso e ao hibridismo permitiu vislumbrá-los como uma espécie inferior que necessitava de salvação. Salvação que na mentalidade europeia vinha na forma de colonização e cristianização. As singularidades da França Antártica, assim como muitos outros livros escritos por navegantes que passavam pelo país naquela época, está repleto de absurdos. Mas há outro ponto no que diz respeito a esses "monstros": existe de fato algo mágico na literatura latino-americana, principalmente no que diz respeito a tantos espíritos e animais gigantes e míticos incluídos nas narrativas de forma tão natural, como, por exemplo, nas histórias de Isabel Allende e Silvina Ocampo. Mesmo que eu não concorde com o que Thevet na maior parte do tempo descreve e afirma em seu livro, também consigo enxergar a tal preguiça gigante — um animal cientificamente extinto já naquela época.
Por hoje, é isto, pessoal.
Lembrando que estamos lendo A redoma de vidro, da Sylvia Plath, no Clube do Livro QC - caso alguém queira participar.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraço,
Melhoras para você, Mia! <3