Querido leitor,
Hoje acordei bem cedinho — não eram nem 7h da manhã. É sábado. Fiquei na cama por horas, debaixo do cobertor, ouvindo os sons lá de fora. Ontem à noite fiz quase a mesma coisa: ainda sentada na cama, antes de deitar, fiquei cerca de 1h parada, de olhos fechados, ouvindo os sons que vinham pela janela. Senti o vento quente acariciar a minha pele e pensei que o amor é isso.
Sempre me surpreendo ao constatar que estou mergulhada em alguma memória. Elas chegam de mansinho, as memórias, e são uma máquina de viagem no tempo que me transportam pra uma outra versão minha. O que verdadeiramente me espanta é que os momentos escolhidos nunca são aqueles para os quais eu estava tão nervosa, que achei que seriam definidores da minha vida — nunca é um encontro específico, um evento, uma oportunidade incrível… Os momentos que realmente voltam no tempo são banais: a gente no mercado felizes por encontrar uma promoção de Ruffles; minhas pernas balançando no ar enquanto eu estava sentada no capô do carro esperando a festa começar durante a virada do ano; o dia em que uma amiga veio aqui em casa para testar tutoriais de maquiagem em mim e tiramos várias fotos; as milhares de caminhadas até a faculdade, o trabalho, ou simplesmente feitas porque sim, porque gosto; quando, numa tarde de um verão escaldante, aproveitei que estávamos no centro e desci do carro, cruzei a rua e fui ao mercado comprar um pote de sorvete que nos deixou muito felizes naquele dia; a música que tocou no exato momento em que desci do ônibus para ir para a aula num dia de primavera em 2019 (You’re so vain, da Carly Simon)… Não lembro da aula que tive naquele dia, mas lembro da música que tocava quando cheguei lá e da dança que as folhas das árvores faziam enquanto eu caminhava ao ritmo da música. Esses momentos que são tão banais enquanto os vivemos são também aqueles que fazem a costura da vida mais bonita.
Enquanto fico aqui sentindo o vento quente do veranico de junho acariciando o meu rosto e ouvindo o som dos pássaros nas árvores perto da minha janela, sei que este momento me acompanhará para sempre. Não vou lembrar da angústia e correria de tudo aquilo que achei que mudaria a minha vida, mas vou gravar em meu coração a delicadeza e a beleza que encontramos quando ouvimos o mundo.
Esses dias, encontrei o meu diário de 2014. Não lembrava dele — e não fazia muita questão de lembrar de todo aquele período, para falar a verdade. 2014 foi um ano particularmente difícil — mas um ano importante, no qual foram iniciados muitos eventos que culminaram na pessoa que eu sou agora. Se não fosse por 2014, eu não estaria aqui. Me pergunto o que 2024 vai deixar de herança.
O que lembro de 2014, além da massa amorfa de pequenas catástrofes, é da meditação. Em 2014, comecei a flertar com o budismo. E foi com um certo misto de espanto e carinho que reli trechos do meu diário daquele ano.
Eu era uma pessoa diferente de quem sou hoje. Era agitada, reativa, sarcástica. Usava muitas camadas de proteção emocional para não ser machucada. Reagia muito facilmente a qualquer sinal de provocação. O mundo me assustava. Eu o ouvia, mas não entendia que eu também sou parte dele. Amava a natureza, mas não me via como parte da natureza e, portanto, não me via como digna de amor. Me fechava ainda mais. Escrevia sem parar na tentativa de me explicar — e me custou muito perceber que a escrita é, para mim, meditação — uma imersão para me entender, uma expressão sagrada para mim, e que toda explicação é vã. Eu explicava para fora quando deveria entender o interior.
Por isso, comecei a meditar. Foi horrível. Foi maravilhoso. Nos contos de fadas, temos histórias de maravilhamento — mas elas não são, por isso, desprovidas de horrores, pelo contrário: se há maravilhamento, há de ter também o desconforto de sair do conhecido. Esse desconforto nem sempre vem de fora — aliás, farei aqui uma pausa para dizer que acredito que quase nenhum desconforto é externo: o que nos deixa desconfortáveis existe e sempre existiu, mas só passa a mexer lá dentro de nós porque existe algo em nós que não reage bem a aquilo. São os nossos temas pessoais, e tudo é pessoal. O mundo gira porque nos importamos. Nesse sentido, acho que é interessante olharmos para nós mesmos e entendermos os nossos porquês antes de tachar todo desconforto como algo ruim ou errado (embora haja coisas ruins que certamente não deveriam existir, mas me refiro aqui ao choque que temos ao nos depararmos com algo muito diferente de nós, algo que, por ser diferente, nos deixa desconfortáveis, por mexer em temas que talvez não tenhamos tido coragem de mexer ainda, por desafiar nossas crenças e nos mostrar um mundo para além do nosso pátio). Há coisas horríveis no mundo, certamente, mas não é porque elas existem que a jornada deixe de ser maravilhosa. Toda maravilha é também assustadora — um anjo pode ser tão lindo quanto monstruoso. E se essa jornada de dez anos de meditação me mostrou algo é que os meus maiores terrores estão em mim, não no outro. O mundo continua sendo o mesmo lugar repleto de coisas lindas e terríveis, como sempre foi desde seu princípio — mas o lindo e o terrível também habitam em mim, pois sou tão natureza quanto uma formação vulcânica. O fim de todos é a putrefação, o abjeto, o terrível — mas há dança nesse meio-tempo. Danço todos os dias e me lembro de que a minha existência também é corpórea. Adoro dançar. Amo colocar o fone de ouvido e passar a noite dançando sozinha no quarto. O êxtase da dança me coloca em conexão com a natureza — e é também meditação. Porém, em 2014, eu não suportava ficar sozinha com os meus pensamentos — como eu me parecia sem o escudo emocional para me proteger? Não sabia se gostava do que encontrei ali. Pensei que fosse forte, mas estava apenas machucada.
Quando percebi que todo o muro de proteção emocional que eu passei anos construindo, toda a raiva que eu usava como escudo, eram apenas máscaras da tristeza, uma chave foi virada na minha mente. Tudo mudou. E toda a tristeza é falta de amor — a lamentação por uma sociedade que caminha de maneira cada vez mais egotista, que não se importa com o outro, que não entende que só existirá um futuro se amarmos uns aos outros.
Entendido isso, anos depois, decidi não me fechar mais. Eu certamente vou me machucar muitas vezes ainda, mas os pássaros ainda cantam à minha janela e o mundo continua. Existe um sentimento de incredulidade ao percebermos que a vida segue mesmo quando nosso pequeno mundo implodiu. Parece traição. Porém a vida é bonita justamente por isso: nossas tragédias, tão enormes para nós, são pequenas no todo. Tudo morre e tudo renasce.
Ainda bem.
Porém não se pode, infelizmente, inventar um poste a que se atrelar, amantes e amigos, tal como não se pode inventar os próprios pais. A vida nos dá isso tudo e depois leva embora, e a grande dificuldade é dizer sim à vida.
(James Baldwin, O quarto de Giovanni,
na tradução de Paulo Henriques Britto)
Revisitei um texto que escrevi em 2019 e estava no meu falecido blog. O texto é sobre Fleabag e como a jornada da protagonista fala sobre suas questões de barreiras emocionais por não se considerar digna de amor. Eu não sabia na época que chegaria a conclusões parecidas sobre a minha vida alguns anos depois — mas é interessante relê-lo agora, com outro olhar. A releitura veio na hora certa, e o trago para cá, pois faz sentido.
Fleabag é a história de amor do século XXI
“Esta é uma história de amor.” É com essas palavras que começa a segunda temporada de Fleabag. No entanto, apesar de a personagem principal que dá nome à série, interpretada por Phoebe Waller-Bridge, quebrar a quarta-parede, olhar para a câmera e nos dar o que poderia ser considerado um inofensivo spoiler a respeito do conteúdo de sua história, o que vemos são seis episódios de relacionamentos conturbados, sofrimento e a vida sendo injusta. Onde está o amor em tudo isso, afinal?
Foi essa a pergunta que ficou martelando na minha cabeça quando desliguei a televisão após ter assistido a todos os episódios de uma só vez. Se aquela é uma história de amor, por que a sensação que eu tinha era de algo inacabado e longe de romântico? A dúvida me atormentou tanto que tive de rever a série, do início ao fim. Não é um trabalho árduo, já que as duas temporadas contam com somente doze episódios ao todo, cada um com menos de meia hora. Porém o trabalho de Phoebe Waller-Bridge, que além de protagonizar também é responsável pela criação da série, é inteligente e sutil o suficiente para não subestimar o público com receitas clichês de amor — apesar de haver um grande clichê na história: o Padre Gato (Andrew Scott).
Uma das coisas de que mais gosto em Fleabag é que a maioria de seus personagens não possuem nomes. A própria protagonista atende pelo apelido que dá título à série, e que literalmente significa “saco de pulgas”. O Padre Gato (tradução livre de Hot Priest, no original) também só atende por Padre. O pai (Bill Paterson) e a madrasta (Olivia Colman) de Fleabag tampouco possuem nomes. Com isso já temos a sacada genial a respeito do que se trata essa história. Assim como acontece em fábulas, nas quais animais representam arquétipos do ser humano e atendem por Pato, Rã, Lebre etc., a série quase não utiliza nomes porque seus personagens são arquétipos de coisas com as quais Fleabag precisa lidar durante sua trajetória. O pai representa a rejeição que ela sente vinda da família; a madrasta é o sentimento de que as pessoas são facilmente substituíveis; e o Padre Gato representa a esperança de redenção.
A princípio, pensei que ele representasse o amor, pois o vínculo de ambos vai crescendo durante a temporada até se transformar em um relacionamento amoroso de fato. As conversas entre as missas, as bebedeiras em conjunto, a cena do confessionário, tudo nos leva a crer que Fleabag finalmente encontrou alguém com quem se importa de verdade, o suficiente para tentar construir um relacionamento afetivo saudável. No entanto, como sua psicóloga (Fiona Shaw) bem pontua: “Você quer foder com o padre ou quer foder com Deus?”. É uma pergunta para a qual a nossa protagonista não tem resposta.
Apesar de ser ateísta, ao longo da temporada ela parece começar a desenvolver a fé em algo, a princípio por causa do interesse amoroso no Padre, mas depois genuinamente, talvez pelos pequenos sinais da existência de algo maior, que a série comicamente coloca em momentos de negação da fé, como quando um quadro cai, fazendo um estardalhaço, ao que o Padre Gato aponta que adora quando “Ele” faz isso, ou na própria cena altamente sensual do confessionário, quando a grande porta da igreja bate no momento em que eles estão prestes a transar. Não que ela precise acreditar em Deus ou que a série seja a busca da personagem por uma fé — longe disso. Mas Fleabag precisa acreditar em si própria. Por meio de flashbacks que nos fazem compreender a dor dela e a causa de todo o ressentimento e autossabotagem, descobrimos que ela está em luto, tanto pela mãe quanto pela melhor amiga, Boo (Jenny Rainsford), por cuja morte ainda se culpa. Diante dessas circunstâncias, é fácil entender que “foder com Deus” seria mais uma forma de se punir por coisas que ela não poderia controlar. E, para isso, é preciso acreditar em algo. Nem que seja na possibilidade de uma redenção para a qual ela não se sente merecedora.
“Eu só quero alguém que me diga como viver a minha vida, Padre, porque até agora eu acho que fiz tudo errado, e eu sei por que as pessoas querem alguém como você em suas vidas, porque você apenas diz para elas como fazer. Você simplesmente diz para elas o que fazer e o que elas vão conseguir ao final das contas, e mesmo que eu não acredite nas suas bobagens, e eu sei cientificamente que nada do que eu faço faz a diferença no fim das contas, eu ainda estou com medo. Por que eu ainda estou com medo?”
Se sentindo culpada pela morte da amiga e desamparada após a morte da mãe, Fleabag recebe a depressão de braços abertos e tenta encontrar maneiras de se punir, tornando sua vida sem sentido e estragando seus relacionamentos. Através de toda a primeira temporada podemos vê-la desprezando o namorado (que, de fato, não era grande coisa, mas estava lá) até o ponto de assistir a tanta pørnografia que o cara vai embora definitivamente após muitas idas e vindas. A vemos pulando de cara em cara, com relacionamentos rápidos e somente sexuais que não significam nada — pelo menos não até o momento da rejeição, que sempre é um momento de dor disfarçada pela quebra da quarta-parede, com a história inventada de que tudo que acontece na vida dela é parte de um show e que ela está interpretando algo para uma audiência. Uma das formas de se fugir da dor é se dissociando de si mesma, se enxergando como uma personagem e se punindo, agindo de forma descuidada apenas para gerar boas histórias. Fleabag gera boas histórias com certeza, mas isso não lhe faz bem algum.
O uso do sexo como forma de se sentir desejada e preencher o vazio que a consumia tanto pelo desprezo da família quanto pela culpa pela morte da amiga é compulsório, mas ela simplesmente não sabe como parar. Já que a amiga morreu em função de uma traição do namorado com a própria Fleabag, ela usa o sexo para se punir. A primeira temporada é angustiante, apesar de cômica, mas a comicidade também faz parte da depressão, a necessidade de colocar uma máscara debochada e fingir que está tudo bem. O problema não é o sexo casual, mas a culpa que a leva até ele. Talvez Phoebe Waller-Bridge tenha escolhido o sexo como ponto de escape para ignorar a depressão da personagem principal porque é muito comum vermos isso acontecer com homens em séries televisivas, mas não com mulheres. Contudo, fazer sexo casual para ignorar problemas é normal a seres humanos de todos os gêneros. Sexo é um dos nossos instintos mais básicos e é ridículo pensar no quanto ele é tratado de forma romântica exclusivamente sob a perspectiva feminina. Transar por transar é normal, e esse está longe de ser o problema de Fleabag. O problema é que ela se fere no processo, se corroendo pela culpa. Como o pai dela disse durante uma conversa particularmente tocante, “Você acha tudo tão doloroso porque sabe amar melhor do que todos nós”. Ela possui sentimentos, muitos, mas os engole e mascara sua dor com um cinismo debochado que só faz mal a ela, tudo porque não se sente digna de ser feliz.
Quando Fleabag conhece o Padre Gato durante o jantar de noivado do pai dela e da madrasta, pouco mais de um ano havia se passado entre a primeira e a segunda temporada. Nesse intervalo de tempo, nos é brevemente mostrado que ela conseguiu controlar seu impulso autodestrutivo sexual, começou a se exercitar e a levar a sério seu café, administrando-o tão bem a ponto de o local ficar lotado em dias de semana. Apesar de seus problemas, ela está estável, se mantendo firme, e estabeleceu uma distância segura entre ela e a família, a quem não via há um bom tempo.
É importante ressaltar que Fleabag não simplesmente conheceu o Padre Gato e ficou livre da depressão e pronta para amar. Ela conheceu muitos homens e nenhum a curou. Ainda que o Padre esteja fora do estereótipo, já que bebe o tempo todo e fala um palavrão a cada dez palavras, além de realmente ser atencioso e se preocupar com ela, a resposta da depressão não está em um homem. A série mostra isso, mas tendemos a romantizar qualquer narrativa, o que é normal, já que fomos criadas dessa maneira tanto pela sociedade em geral, com seus estereótipos de feminilidade e salvação pelo romance, quanto por produções artísticas, como o cinema, que por um bom tempo nos saturou com comédias românticas em que a mocinha encontra o sentido da vida após conhecer um certo cara bonitão e diferente. Fleabag não é esse tipo de história. E o Padre Gato não é sua história de amor.
Sendo Fleabag uma personagem sem nome, ela também representa um arquétipo social, e esse é o arquétipo da mulher moderna do século XXI que se culpa por tudo e tenta se autossabotar como uma espécie de mecanismo de destruição. A forma como despreza as pessoas, usa homens para se satisfazer sexualmente, deixando-os até mesmo fazer coisas que ela nem queria só para ter um momento de prazer físico com alguém, é um dos retratos mais reais de como lidamos com a depressão hoje em dia. Podemos buscar sentido no sexo, no sono, em programas de televisão ou mesmo em pessoas, não as enxergando mais como alguém real, mas sim como uma âncora idealizada que irá nos salvar. Fleabag não possui uma âncora e se sente cada vez pior enquanto finge desprezar as pessoas quando na verdade gostaria apenas do amor e da aceitação delas. No entanto, ela só reconhece isso quando, após uma conversa franca sobre o envelhecimento feminino com uma executiva (Kristin Scott Thomas) que trabalha com sua irmã, ela diz que não tem nada para ela naquela festa, pois as pessoas são idiotas, ao que a mulher mais velha lhe responde que “querida, tudo o que temos são as pessoas”. É nesse momento que algo começa a ser remexido em Fleabag, algo que ainda não havíamos visto de fato, pois estava escondido sob camadas e camadas de cinismo. Ela, como qualquer pessoa, quer ser amada, mas não gosta de si mesma o suficiente para se permitir isso.
Apesar de haver amor entre Fleabag e o Padre Gato, a história de amor não é sobre eles como um casal. O Padre, sendo o arquétipo da esperança e redenção, auxilia Fleabag por ter sido o primeiro a enxergá-la de fato, por inteiro, para além de seu cinismo e dos momentos em que desaparecia e conversava com a câmera. Por sua sensibilidade e verdade, por ele mostrar que não é uma pessoa perfeita e está longe de ser um homem de Deus incorruptível como o cargo sugere, por ser a primeira pessoa na série, além da protagonista, que expõe seus defeitos sem grandes vergonhas, ela consegue se permitir ser amada. Porque, a partir desse ponto, ele deixa de ser um estereótipo e passa a ser uma pessoa. Isso seria ainda mais visível se ele ganhasse um nome próprio, o que não acontece, mas o que acontece é um diálogo, pouco antes da cena do confessionário, em que ele salienta descaradamente para ela que ela o chama de Padre como isso não lhe causasse tesão. A recusa em usar um nome próprio é escrachada ali porque ele a enxerga verdadeiramente. E é nesse momento que ela se abre para o amor. Contudo, se abrir para o amor não significa ter um final feliz de novela, com casamento, filhos e uma vida tradicional. A vida de comercial de margarina já deixou de existir há algumas décadas — até porque só existia na aparência —, e esse certamente não é o destino da nossa protagonista.
A temporada inteira está repleta de pessoas aceitando o amor. Não há nenhum personagem que não seja problemático ali. O pai está se casando pela segunda vez com a madrinha de suas filhas. Claire (Sian Clifford), a irmã de Fleabag e uma das únicas personagens que possuem nome próprio, está presa em um relacionamento com Martin (Brett Gelman), um homem nojento, misógino e alcoólatra. O Padre não consegue decidir se dá vazão a seus sentimentos e instintos sexuais ou se continua celibatário, obedecendo às ordens da igreja. Entre Fleabag e Deus, quem ganha?
O pai de Fleabag seguiu em frente após a morte da esposa e encontrou novamente o amor. A irmã dela tomou coragem e saiu de um relacionamento péssimo para ir atrás de um homem finlandês que não saía da sua cabeça. Mas Fleabag, apesar de seu desprendimento para se envolver fisicamente com pessoas, não conseguia abrir seu coração. E a verdadeira história de amor da temporada é esta: aprender a amar e se permitir ser amado, apesar de todos os problemas e defeitos e erros do passado.
Estamos todos fodidos. E tudo o que temos são as pessoas. O amor é horrível. A vida é injusta. Essas são algumas das lições que Fleabag, uma das melhores séries da atualidade, traz. Mas apesar de todo o discurso maravilhosamente real que o Padre Gato realiza na cerimônia de casamento do pai e da madrasta, falando sobre como o amor é horrível e, por isso mesmo, é para os corajosos, eles não ficam juntos. É Deus quem ganha o coração do Padre, embora ele admita que ama Fleabag em uma cena particularmente sensível e tocante, quando pela primeira vez ela se expõe e declara seu amor por ele.
Essa abertura emocional é a história de amor. Aceitar o amor, amar a si mesma, apesar de tudo ou por causa de tudo. Essa é a história de amor do século XXI: não mais a respeito de casais, já que aceitamos que relacionamentos possuem um tempo e que tudo bem quando não dão certo. Nem sempre uma pessoa a quem amamos permanece na nossa vida, mas as coisas que passamos com ela permanecem e nos transformam. A verdadeira história de amor de Fleabag é sua jornada de luto e depressão até o momento em que ela aceita que está tudo bem sentir tristeza e não saber ao certo seu lugar no mundo, que ela merece ser amada assim como qualquer outra pessoa. É nesse momento que ela vai embora sozinha daquele ponto de ônibus e impede a câmera de segui-la, finalizando assim um ciclo de interpretação, já que agora ela não precisa mais fingir ser uma personagem. Ela é só uma pessoa, uma mulher normal com dores e depressão, mas que não é menos digna de amor por isso. Fleabag está de coração partido, mas pronta para um relacionamento e curada de suas feridas do luto, não precisando mais de um espectador para validar sua existência.
É isto, pessoal.
No site do QC, voltamos com os textos — depois da pausa por causa das enchentes no RS (embora as enchentes tenham passado, a destruição continua, pois o estado está em reconstrução e ainda há muitas pessoas que precisam de ajuda; eu mesma estou aos poucos tentando recuperar as coisas aqui em casa, então está tudo num ritmo mais lento, mas é importante tentar voltar com as coisas que me fazem bem, e a literatura é uma delas, talvez a principal delas). Vocês podem conferir o que publicamos aqui. Também voltei com o Clube do Livro QC — em junho, estamos lendo Antígona, de Sófocles. QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 29/06, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Abraços,
Mia
Que edição liiinda, Mia! A meditação realmente é muito, muito potente - e nos mostra que tá tudo dentro de nós, tanto a luz quanto a sombra. Fico viajando nesses pensamentos também e amei saber que te ajudou tanto conseguir se conectar a si mesma por meio da prática.
"Esse desconforto nem sempre vem de fora — aliás, farei aqui uma pausa para dizer que acredito que quase nenhum desconforto é externo: o que nos deixa desconfortáveis existe e sempre existiu, mas só passa a mexer lá dentro de nós porque existe algo em nós que não reage bem a aquilo. São os nossos temas pessoais, e tudo é pessoal." Fiquei vidrada nisso aqui <3
Sobre a tua análise de Fleabag, wow, adorei! Amo a série - especialmente a segunda temporada -, e confesso que nunca tinha analisado ela tão a fundo. Fiquei encantada com o roteiro e o deboche triste absolutamente inteligente, mas nunca cheguei à conclusão de que era sobre conseguir se abrir novamente ao amor. Precisava ler isso. Obrigada!