#25 - As três faces da tragédia
"foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas." (mario quintana)
Querido leitor,
Hoje é 18 de maio. Se estivéssemos em um momento normal, hoje seria realizada a Noite dos Museus, evento anual que acontece em Porto Alegre no qual as pessoas circulam livremente pelos museus à noite. Há guias explicando a história e a arte de cada um, rotas de ônibus especiais e muita vida na cidade, que ganha mais luzes e sons. Porto Alegre é linda no outono. Mas os museus alagaram. Essa Porto Alegre não existe mais.
Há um mês, me preparava com as minhas amigas para ir na Noite dos Museus, passear pela cidade, ver Porto Alegre sob as bonitas luzes do pôr do sol, fazer um piquenique e depois ver arte a noite toda. Agora, todavia, vemos uma Porto Alegre muito diferente. Bairros submersos. O rio Guaíba invadindo a cidade pela falta de manutenção do sistema de contenção de enchentes. Pessoas desabrigadas, muitas ainda sem água e energia elétrica. Nos bairros em que a água começou a baixar, o que se vê é destruição — não apenas de coisas, mas de vidas inteiras, memórias, esforço, lares. Sabe-se lá quando ou se as pessoas poderão voltar para suas casas.
Tragédias têm três faces: a minha, a do Outro e a de fora.
Ao vivenciarmos uma tragédia nos encontramos num espaço limítrofe onde tudo nos atinge. Nesses momentos, é normal termos um colapso nervoso — não apenas pelo que nos afeta diretamente, mas também por entendermos que as dimensões de uma tragédia ultrapassam muito aquilo que o eu tem de pessoal: tragédias são coletivas. Porém também são individuais — e lidar com essa dicotomia é parte do processo de crescimento, é doloroso e desorientador.
Escrevo isto durante o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul, onde moro. É dia 04 de maio e estamos passando pela maior enchente da história gaúcha, com cidades submersas e a água atingindo locais onde nunca havia feito estrago antes. É assustador. Eu estou bem — de olho nos níveis da barragem que fica a 4km de casa, mas tudo está sob controle até o momento —, contudo, muitas pessoas não estão. Desde o início da semana a situação tem se agravado de forma alarmante, com chuvas torrenciais que caem incessantemente, rios e lagos transbordando e cidades inteiras ilhadas. Mando mensagens de hora em hora para amigos e familiares. Tento não colocá-los em pânico, mas me preocupo com todos e fico desesperada quando alguém não me responde, quando uma mensagem não é visualizada. Alguns tiveram de ser resgatados, e temo pelos outros, temo também por mim. Sei que tenho sorte — estou bem. Os danos aqui têm sido mínimos, apenas um pequeno alagamento e o mofo, que voltou às paredes. Todavia, mesmo sabendo que estou bem e que tenho sorte, é impossível não lamentar as pequenas perdas ou ficar apreensiva com as possibilidades do porvir. E mesmo quando esse pensamento me cruza a mente, me sinto dilacerada por estar pensando em mim num momento de tamanha tragédia coletiva, quando há pessoas que perderam tudo — inclusive suas vidas — durante a enchente.
Penso na dimensão da tragédia — nos registros que ficam. Em 2018, fiz uma série de reportagens na faculdade sobre o que aconteceria em Porto Alegre caso ocorresse uma enchente como a de 1941; a de agora superou aquela. E o que fazer? Não é como se ninguém soubesse que isso aconteceria. Costuramos a memória, cortamos pedaços de linha, colocamos botões para esconder buracos. Tudo é narrativa — e nem sempre gostamos daquela que temos em mãos. Não gostamos de lembrar.
Narrativas são diálogos. Foi Joan Didion quem disse que “Para viver, contamos histórias a nós mesmos”. Era 2019 quando comecei a ler Didion ao estudar a maneira como mulheres contaram o século XX, especialmente as guerras — mas então me deparei com suas crônicas intimistas sobre morte e fiquei fascinada, pois a mente da Didion, uma escritora e jornalista acostumada a tentar encontrar razões nos muitos porquês da vida, ao lidar com a morte, foi procurar em livros e especialistas para entender o que estava acontecendo. Nessa busca o que ela encontrou virou narrativa — e a tragédia tornou-se tripla: a dela, que vivenciou aquilo; a do Outro, sob o olhar dos leitores, que impõem a ela suas próprias subjetividades; e a de fora, ou a dos fatos objetivos: aconteceu a morte de maneira específica, há um motivo médico para tal desenrolar, os registros nos mostram de forma fria apenas aquilo que não admite subjetividade, aquilo que é seco e oco como um formulário — ainda assim, embora tal verdade possa ser objetiva, não nos chega tão perto quanto a subjetividade das emoções humanas, que narrativizam, costuram, cortam e moldam as memórias, mas que nos abraçam em sua coletividade da experiência humana.
Tudo é memória. Lembro do que foi dito pela Nikelen Witter a respeito da tragédia no Rio Grande do Sul: “É politizando que a gente cria a memória”. Eu não quero falar de política porque estou exausta. Mas é preciso falar da tragédia. É preciso ouvir o Outro — olhar para a vida para além de nós mesmos. É preciso cultivar a memória, ainda que esta seja dolorosa. Quando isso tudo passar, vamos querer esquecer. Mas não devemos. Esquecer é traçar um destino de retorno. Precisamos lembrar. Por isso, escrevo.
Agora, a tragédia bate à porta na forma de enchente — tragédia num conceito diferente do teatral, mas, ainda assim, tragédia. E a suportamos da mesma forma que as personagens trágicas: nos contando histórias, dilacerando nossos egos aos percebermos nos Outros o espelho de nós mesmos. Em nossa vida talvez sejamos o centro narrativo, mas a tragédia nos faz olhar para além do nosso pátio e perceber que há múltiplos centros e a nossa individualidade é compartilhada.
Comecei a escrever esta edição ainda nos primeiros dias das enchentes. Hoje já é 15 de maio e as enchentes continuam. Não consegui mais escrever palavra alguma durante todos esses dias. Li esses dias o poema que Mario Quintana, escritor gaúcho, fez alguns anos após a enchente de 1941. Nele, o poeta diz: “A enchente de 1941. Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava. Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas a dentro. Que dias aqueles! E de noite não era preciso sonhar: pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas”. Isso me tocou de muitas formas, e fiquei pensando em como aquele final é verdadeiro: é desnecessário fazer poemas durante a tragédia. Sim, a arte nos ajuda a suportar a vida. Mas a arte é elaboração do viver — elaboração do trauma, do sentimento, daquilo que não conseguimos viver em plenitude. O que dizer daquilo que é vivido de forma intensa? O que dizer no momento em que se vive a perda? Que palavra comporta a morte? Como encontrar palavras perante o horror? Ironicamente, passei 4 anos e meio estudando justamente como noticiar a catástrofe, como comunicar a tragédia. E se eu estivesse trabalhando num veículo de notícias, provavelmente teria de fazê-lo, independentemente do que sentisse, independentemente da minha subjetividade. Mas não estou. Então, me permiti o silêncio. Meu tempo nesses dias tem sido destinado a ajudar como eu posso em resgates e doações, e a tentar não enlouquecer.
Como não enlouquecer perante a tragédia?
Me pergunto isso todos os dias. Acordo, lembro do que estamos vivendo e digo que não dá mais. Mas dá. Sigo vivendo, fazendo o que posso, tentando sobreviver mais uma hora, um dia, uma semana.
Escrevo enquanto helicópteros passam por cima da minha casa — helicópteros de ajuda para resgates e doações. Os pássaros se assustam, andam agitados, se escondendo pelos telhados. As pessoas também. E tudo dói.
Escrevo e olho a parede na minha frente — manchada pelo mofo. Meu quarto virou um templo do mofo, que espalha-se pelas superfícies. A parte de baixo da casa ainda tem alguns centímetros de água; a de cima, onde está o meu quarto, está mofada. Lavar não adianta, pois as chuvas continuam, o mofo volta, e uma nova reforma terá de ser feita. É muita chuva. Meu travesseiro mofou — molhou com a chuva. Tive de trocá-lo. Talvez o outro também molhe. A chuva segue.
E isso não é nada.
É dia 17 de maio. Ficamos mais de uma semana sem água. Não deu para tomar banho. Tivemos de racionar o consumo de água potável — havia apenas 5 litros para 3 pessoas. A água desapareceu dos supermercados e não havia uma gota sequer nas torneiras. Estávamos assustados. A chuva seguia e a barragem aqui perto de casa ameaçava estourar. Não aconteceu e ficamos bem. A água voltou depois de 9 dias, e antes disso conseguimos uma bombona d’água para bebermos. Foi difícil, assustador e angustiante — mas estamos bem. Não foi nada.
Não foi nada perto de tantas pessoas que perderam tudo. Perdi um travesseiro — e daí? Andamos por 10 cm de água para ir até a cozinha — grande coisa. Ficamos sem tomar banho por mais de uma semana — é a vida. Terei de fazer outra reforma, pois a chuva torrencial invadiu o meu quarto e mofou as paredes — quem se importa? Isso não é nada perante tudo.
Eu não me sinto no direito de reclamar. São algumas perdas materiais, mas não é nada perto do que tanta gente perdeu — as casas, as memórias, a vida.
O centro narrativo se expande durante tragédias. O eu não encontra vazão quanto se olha o todo. A minha individualidade é só mais uma perante a de tantas pessoas que terão de reconstruir suas vidas do zero. A tragédia tem três faces: a minha é irrelevante; a do Outro é desesperadora; a de fora é revoltante. Nossa representação política, a tragédia de fora, não olha para o Outro — enxerga a partir das lentes neoliberais do lucro. Essa tragédia de fora tem função política — e a função política importa, pois decidirá o nosso futuro. Porém a urgência do que importa para quem está vivendo a tragédia — para o Outro — é sobreviver. Quem está aqui tenta desesperadamente sobreviver e tentar encontrar motivos para continuar, tentar encontrar um futuro no qual se possa ter uma vida digna novamente.
Conversando com alguns amigos, eles apontaram como eu iniciei a conversa falando que sou pessimista quanto ao futuro — especialmente ao falarmos da crise climática e de como os governantes lidam com ela sob um sistema neoliberal que não pensa nas pessoas nem no planeta —, mas, ao final de 3h de conversa, eu estava falando que acredito com todas as minhas forças que devemos amar as pessoas — sempre, e agora mais do que nunca. Acredito que estamos aqui para fazer o nosso melhor. Acredito que não há futuro sem o amor — não apenas pelas pessoas próximas, mas também por gente que nem conhecemos. Verdadeiramente amar as pessoas — o que há na vida além disso?
Pode parecer contraditório ter uma visão pessimista do futuro, mas também ser quase utópica ao manifestar a crença de que estamos aqui para amar as pessoas — sei bem disso. Porém embora os anos de jornalismo tenham me feito olhar para o mundo de uma forma mais dura, pessimista e desconfiada, os anos de pandemia me lembraram como o amor é aquilo de que a vida precisa — o amor em sua forma prática, para além dos poemas. Sim, escrever é maravilhoso, ler os poetas me alimenta a alma; mas pessoas precisam ser alimentadas agora. Pessoas precisam de lares, de alimento, de vestuário, de afeto. Não podemos fazer muita coisa sozinhos, contudo, o amor coletivo posto em prática pode ajudar alguém. Honestamente não sei como é possível viver neste mundo no qual vivemos e não entender que é apenas o amor que nos salvará da destruição. O amor é a minha religião.
O amor como ação derruba as barreiras entre o Eu e o Outro e constrói o Nós. É essa consciência de coletividade — de que não existimos sozinhos, de que toda a vida no planeta é interligada — que precisamos despertar.
Infelizmente, a tragédia não acabou. A cobertura jornalística foi ofensivamente falha na primeira semana das enchentes, e agora parece seguir sua própria agenda — mostrando a realidade gaúcha, mas não dando ênfase a coisas importantes para além da espetacularização da tragédia. É importante frisar que: a tragédia não acabou, as enchentes continuam. Boa parte do estado ainda está submersa, e mesmo nos pontos em que a água está baixando, há necessidade de ajuda, de resgates, de reconstrução.
As doações são de extrema importância agora. Sigam doando o que puderem, pois ainda há muitas pessoas necessitadas. Lembrem-se de itens essenciais, mas também de algumas coisas mais específicas, como roupas plus size, que estão em falta, itens de higiene básicos, e, o mais importante, roupas de frio: no RS faz muito frio, e estamos passando por uma frente fria que derrubou as temperaturas para 5°C. Blusas térmicas, blusões, casacos, meias de lã, polainas, toucas, cachecóis, luvas, todos esses itens são muito necessários.
O RS tem meio milhão de migrantes climáticos — pessoas que tiveram de sair de suas casas, que talvez nem tenham mais casa para voltar, pois muitas cidades não poderão ser reconstruídas. É obrigação do Estado ajudá-las a reconstruir suas vidas — porém como seres humanos, é nossa função olhar para o Outro e perceber ali mais do que um número numa estatística, colocar-se no lugar das pessoas e ter empatia, amá-las, cuidar delas, fazer o que pudermos. Temos de cuidar do planeta também. A natureza não é a nossa inimiga — o capitalismo o é. Somos tão natureza quanto os rios — cuidar de um sem cuidar dos outros é negar a própria vida.
Abaixo, algumas organizações para doações:
O Correios está aceitando doações de todo o Brasil. Informe-se dos itens a serem doados.
Apoia.se da Cozinha Solidária (mais informações aqui).
A Frente Quilombola está arrecadando doações para comunidades quilombolas de Porto Alegre.
Neste site é possível ver informações sobre abrigos e doações no RS, dividido por cidade e por necessidade de cada abrigo com atualizações recentes.
Existem muitas outras pessoas e entidades envolvidas no movimento de ajuda ao RS, porém só posso listar algumas. Mas toda ajuda é ajuda, o importante é não deixarmos o amor e a empatia esmorecerem.
Se cuidem.
Com carinho,
Mia
Ah, Mia, que lindo esse trecho do Quintana que você compartilhou! Não conhecia - e fico imaginando ele vendo tudo isso hoje... de novo a CCMQ inundada, de novo o caos, de novo a água levando tudo, só que muito pior. Por aqui, também encontro alento no amor - e, de alguma forma, na arte, que também é amor, afinal.
Um abraço forte e seguimos!
Querida Mia, seu texto me tocou profundamente. Entendo quando fala que não se sente no direito de reclamar, mas vc tem. A tragédia do Outro pode ser mais grave, mas a sua dor -mesmo que vc tenha "sorte"- deve tbm ser sentida e acolhida. Desejo mto amor pra vc e sabedoria para lidar com tudo isso. E seu texto me fez lembrar que queria doar casacos que nunca uso pois no Rio quase nunca tem frio, obrigada por escrever.