#3 - A eternidade e a semana
Querido leitor,
A morte é uma coisa estranha.
Nunca soube lidar muito bem com a estranheza da morte porque o que sempre permaneceu foi o sentimento de que a pessoa ainda existia - eu apenas não podia falar com ela. E talvez seja isso mesmo. Talvez o infinito seja o tempo da morte. A espera interminável por uma comunicação que não vai mais acontecer. E o agora, em contraposição, seja a urgência da vida - correr, dançar, falar, estar entre aqueles a quem amamos, tudo no agora, pois o amanhã é esse infinito indizível.
Mrs. Dalloway é um dos livros mais violentos que já li. Violento porque nele as personagens encontram-se no que agora chamamos de pós-pandemia. A gripe espanhola, que assolou o mundo, matando aos milhões, havia chegado ao fim - mas restava uma população desgastada, com sequelas físicas e emocionais. A própria personagem-título, Clarissa Dalloway, é uma delas. Após a doença, ficou fraca. Por isso, é tão importante a frase que abre o livro: "Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores". É a urgência da vida em contraponto com a espera da morte.
No conto Mrs. Dalloway em Bond Street, um esboço do que viria a ser Mrs. Dalloway, podemos assim dizer, Virginia Woolf escreve que Clarissa está caminhando em seu trajeto para comprar flores e luvas, mas sua mente insiste em voltar aos temas de que ela tanto tenta se afastar. Enquanto passa por lojas, pessoas e observa a vida ao redor, que voltara àquela Londres devastada pela guerra e pela pandemia, a mente de Clarissa lhe puxa para a lembrança da morte ao persistir em fixar o pensamento em Adonais, poema que Percy Shelley escreveu como elegia a John Keats, e a Cimbelino, de Shakespeare, especialmente a passagem em que, antes de um sepultamento, há um discurso fúnebre muito poético.
Desde ontem, encontro-me no mesmo estado de Clarissa Dalloway, com o meu pensamento insistindo em fixar-se em Cimbelino:
“Não temas o sol ardente nem o inverno enregelado; já descansas sorridente depois de cumprido o fado. O velho, a moça fagueira, o vilanaz, tudo é poeira. Não temas os poderosos, a vingança dos tiranos; livre estás dos dolorosos apetites dos humanos. Os ricos, a ciência inteira, bons e os maus, tudo é poeira. Do raio não tenhas medo, nem do trovão ribombante, o amigo não temas tredo, nem o inimigo arrogante. Moços e velhos, em fieira, sempre terminam em poeira. Nenhum encanto te ofenda de algum mago ou bruxa horrenda. Que espectro nenhum se prenda a essa tua eterna tenda. Que nome tenhas eterno em teu leito sempiterno.”
Abaixo, o discurso continua, dizendo: "Tendo voltado para a terra fria, livres estão da dor e da alegria" (tradução de Carlos Alberto Nunes). E o que é a morte senão esse findar das dores e aflições da vida?
Exceto para os que ficam.
Aos que ficam, existe o luto - essa eternidade indizível.
Mas somos Clarissa Dalloway, dizendo que nós mesmas compraremos as flores, ainda que uma centena de pessoas pudessem fazê-lo em nosso lugar, porque a urgência da vida - o reconhecimento da eternidade silenciosa da morte - nos impele a tal. Mas nem todos podem, e talvez jamais consigam, afastar o espectro da morte de seus pensamentos após terem contemplado sua silhueta diáfana tão de perto.
Quando a pandemia começou, escrevi sobre O ano do pensamento mágico, livro da Joan Didion, no meu blog pessoal. Lá, eu disse: "A rigidez do tempo é só um escape para não enlouquecermos. O tempo da morte é em todo o lugar e ocupa o não-tempo, as lacunas, a espera. Talvez seja isso a que chamamos de eternidade". E essa eternidade parece prolongar-se quando a vida nos surpreende. O arrefecimento da pandemia (não seu final - apenas um arrefecimento, já que o fim social de algo não significa o fim biológico, que ainda vai demorar um tempo) nos fez pensar em reuniões, na possibilidade do reencontro, em tudo o que perdemos e em tudo o que permaneceu.
A vida é um estado de impermanência; a morte é eterna.
Após anos de pandemia, finalmente meu tio, que morava no Rio de Janeiro, conseguiria viajar para cá, para passarmos o fim de ano juntos, toda a família. Isso foi combinado ainda esta semana. Então veio a morte - e a urgência da vida cessou. Agora o que resta é a eternidade indizível.
"Não temas o sol ardente nem o inverno enregelado; já descansas sorridente depois de cumprido o fado. [...] Tendo voltado para a terra fria, livre estás da dor e da alegria." Descanse em paz, tio Zé.
The maiden's lament, de Horace Vernet (1789-1863)
Textos da semana
Tess dos D’urbervilles e as perdas da inocência (Ket Santos)
O grunge e o Romantismo em Nirvana e Alice in Chains (Ana Júlia Neves)
A origem da estética Old Money e o retorno do preppy para além da Academia (Isadora Bispo)
A arrogância espiritual em Padre Sérgio, de Tolstói (Mia Sodré)
Shakespeare: dramaturgia e filosofia em Hamlet (Laura Elizia Haubert)
Obra de arte da semana
Tenho pensado muito em Henry James. O problema é que minha falta de concentração me impede de simplesmente pegar o livro e lê-lo, mas eu consigo pensar na história incessantemente durante o processo de finalmente começar a leitura. Acredito que minha próxima leitura de Henry James será A fera na selva. Tenho a sensação de que alguns livros e histórias chamam quando chega a hora de serem lidos, e é o que está acontecendo agora com A fera na selva. Mas essa não é a única história de James que tem estado em meus pensamentos, e não sei muito bem por quê, mas desde que li A outra volta do parafuso, dois anos atrás, não havia pensado tanto nessa história como agora. Tal pensamento me levou a pensar muito sobre um de meus pintores favoritos, Edvard Munch.
Munch nasceu na Noruega em 1863, e durante sua carreira criou uma vasta coleção de gravuras, desenhos e pinturas. Muitas dessas obras retratam uma forte angústia mental e são reflexos de sua própria vida. Sua mãe morreu de tuberculose em 1868, e ele e seus irmãos foram criados pelo pai, que sofria de uma doença mental não tratada corretamente, o que influenciou na maneira como foram criados. Apesar de muitas de suas pinturas serem conhecidas por suas cores vibrantes, o tom pessimista sempre foi bastante abordado. Os sentimentos de angústia, desespero, solidão, doença, terror, morte e vida, o amor e a perda do amor parecem estar sempre presentes em sua produção artística.
A arte de Edvard Munch reflete emoção, cria uma narrativa e indica uma ideia. Algo para se pensar além do mundo natural científico, uma curta história de terror em formato de pintura. A solidão também é frequentemente retratada em suas obras, representada pelas linhas contrastantes, as cores mais escuras e os tons sombrios. Uma dessas obras recebeu o título de Duas pessoas. Os solitários., de 1899.
Na xilogravura, há duas figuras de costas para o espectador, uma mulher e um homem. A distância entre elas é quase palpável e o contraste entre as figuras indica uma tentativa de aproximação. Mas ambas parecem ter sido congeladas na imagem, eternamente separadas. A água ao fundo enfatiza o clima de saudade e solidão, tanto temática quanto imageticamente. O formato íntimo e recorte apertado faz parecer que as duas figuras estão próximas, mas há toda uma calma tensa e uma sensação de afastamento. Assim como o título, o cenário indica que mesmo teoricamente juntas, estão sozinhas em seus próprios mundos.
A outra volta do parafuso, de Henry James, com capa da xilogravura Edward Munch, Duas pessoas. Os solitários. (1899)
Mas o que Henry James tem a ver com Edvard Munch?
Me peguei pensando nas capas lindas das edições da editora Penguin-Companhia, que são obras de arte de alguma forma relacionadas com a história do livro em questão. A edição publicada em 2011 de A outra volta do parafuso traz a xilogravura supracitada de Munch na capa.
O livro conta a história de uma jovem moça contratada como professora e tutora de dois irmãos, Miles e Flora, cujos pais morreram durante uma viagem. A jovem aceita se mudar para a propriedade de Bly, em Essex, nos arredores de Londres. Seu patrão, tio e tutor das duas crianças, impõe que a narradora seja a governanta da casa de Bly e que não o importune sobre assuntos triviais que envolvam a casa. Tornando-a assim responsável em tempo integral pelas crianças.
A cena inicial, em que um narrador se dispõe a contar uma história de horror durante uma reunião de amigos, fazendo com que a história da jovem tutora ganhe voz, contrasta com o mistério — sobre duas figuras fantasmagóricas e o comportamento estranho das crianças — no qual a moça se envolve assim que chega a Bly. Como em Duas pessoas. Os solitários., de Munch, Henry James não entrega a solução para os mistérios que rodeiam a casa. Muitas vezes, apenas deixa subentendida uma violência silenciosa e a indicação de algum abuso cometido, assim como a presença dos seres sobrenaturais e o porquê de ainda permanecem ali.
Às duas pessoas solitárias da obra de Munch contrastam com a solidão e a incerteza que rodeia as figuras fantasmagóricas que circulam por Bly. Na imagem da xilogravura, o distanciamento de ambas suscita um novo mistério que talvez não tenha sido criado para ser entendido, mas sim absorvido.
Uma das influências de Edvard Munch foi Sigmund Freud, que dissertou muito sobre o comportamento humano, relacionando-o com as experiências da infância, como traumas com os pais e abandono. Munch viu sua mãe morrer de tuberculose quando tinha apenas cinco anos, e perdeu sua irmã, Sophie, da mesma forma aos catorze, como é possível observar em sua famosa pintura, A criança doente, de 1886, em que ele retrata seu testemunho durante a doença de sua irmã. No caso de Os solitários de 1899, Munch não oferece uma solução para a cena narrada, apenas transpõe um sentimento que pode ser entendido de inúmeras formas, congelando as duas figuras em uma eterna distância e angústia repletas de solidão e mistério.
Babi
Falling star, por Witold Pruszkowski (1884)
Por hoje, é isto. Se cuidem.
Abraço,
Mia