#7 - O tempo e a semana
O tempo sem tempo, Thomas Mann e sua montanha mágica, e o busto de Nefertiti
Querido leitor,
A volta do recesso de fim de ano da newsletter deveria ter sido na semana passada - mas eu fiquei meio adoentada e simplesmente não tive energia para escrever direito. Janeiros geralmente são assim: um tempo fora do tempo repleto de acontecimentos e nadas, e o meu corpo vai perdendo sua energia durante esses momentos. Tal qual uma lagartinha, é hora de ficar no meu casulo metafórico apenas existindo, lendo alguns livros, assistindo a séries-conforto e esperando pelo momento em que me sentirei normal novamente.
Em quatro dias, faço 29 anos. É o fim dos vinte-e-poucos. Não é algo que me incomoda - ao contrário, me impressiona. Isso porque me vejo agora, aos 28 anos, prestes a fazer 29, ainda tão jovem - mas eu me sinto tão antiga. É como se vivesse há séculos, como se esses vinte-e-poucos anos fossem apenas uma alegoria do tempo, uma brincadeira de sombras.
Desde o início da pandemia, tenho sentido uma distorção no tempo. É o que chamo de tempo sem tempo, como se estivesse dentro de uma bolha, flutando no espaço, na qual o tempo passa e não passa concomitante - tudo está em estase, embora exista e siga e mude.
Isso não é algo novo, e tenho lembrado muito da minha leitura de A montanha mágica, de Thomas Mann, desde que esse período começou. Li o livro entre 2016 e início de 2017; foram cerca de seis meses tendo por companhia Hans Castorp vivendo na montanha. Na época, se tornou um dos meus livros favoritos. Hoje em dia, percebo não apenas que é um dos livros de que mais gosto, como que Thomas Mann sabia exatamente do que estava falando: existem bolhas de tempo que se formam em situações extraordinárias. Por mais que saibamos que o tempo corre, que o tempo existe, que o tempo segue seu curso, mergulhamos em suas águas como quem mergulha no Lete - e esquecemos que somos sujeitos ao tempo, porque o tempo se torna a própria essência da vida. Quando mergulhados na essência, não conseguimos discernir o que separa a matéria-prima do resto existente, e ficamos imersos naquilo que nos é primordial, encarando nossas verdades e vivendo de maneira suspensa.
Hans Castorp vai visitar o primo na montanha - local onde há uma colônia de tuberculosos bem-de-vida, que passam seus dias ali aproveitando o bom ar das altitudes para estender suas existências. A princípio, o jovem Hans Castorp não vê problema algum em estar no meio de pessoas com tuberculose. Serão apenas três semanas, ele pensa. Mas o tempo na montanha não é contado em dias ou semanas, e sim em meses. Durante a leitura, nem nós sabemos quanto tempo se passou - os acontecimentos se dão sem grandes informações temporais, pois tudo é vivido no presente, ainda que a névoa do passado esteja sempre pairando no ar da montanha.
É apenas quando outro grande evento - a chegada da Primeira Guerra Mundial - acontece que o tempo muda, acelera, mostra outra face. A experiência temporal de Hans Castorp - e dos jovens que vão dar suas vidas para nada - dialoga com a experiência universal de viver um momento longo de espera; na montanha, há a espera pela morte. Mas existem muitas questões postuladas durante esse tempo - existe vida durante a espera. O que nos faz pensar: não seria a vida um intervalo de espera pela morte?
“O tempo tudo clarifica e não há estado de espírito que se mantenha inalterado com o passar das horas.”
Em junho do ano passado, a Giovanna escreveu sobre o tempo em A montanha mágica e O deserto dos tártaros. Quando li o texto dela, fiquei pensativa - e assim continuo -, pois esse tempo sem tempo tem sido um tema constante da minha vida nos últimos anos, e me sinto um pouco como Hans Castorp que subiu a montanha acreditando que lá ficaria por apenas três semanas, mas essas três semanas logo transformaram-se em uma bolha temporal na qual existimos na rotina da espera. Fazemos coisas, chegamos a conclusões, criamos obras… Mas o tempo passa de maneira diferente na montanha.
A Giovanna encerra o texto fazendo um questionamento que também é meu: “quando chegar a hora, seremos capazes de deixar nosso Forte Bastiani? Ou terá nossa noção de espaço-tempo se alterado permanentemente?”. Eu honestamente não sei.
Textos da semana
Como não consegui enviar a newsletter na semana passada, os textos listados serão os da outra semana, quando retornamos do recesso no QC, e desta.
Desencanto: o silêncio ensurdecedor do amor proibido na Inglaterra dos anos 1940 (Thais Fraccari)
A Feiticeira: a delicada magia da submissão (ou da subversão?) (Victória Haydée)
Os traumas de Perséfone em Lore Olympus (Mia Sodré)
Colonialismo europeu em A Tempestade, de William Shakespeare (Ana Carol)
6 filmes para se apaixonar pelos grandes clássicos da literatura (Isadora Bispo)
As convidadas: o realismo mágico de Silvina Ocampo (Mia Sodré)
A seca como personagem em Vidas Secas, de Graciliano Ramos (Vitória Schmidt)
Recordando Sherlock Holmes: a memória nos contos de Sir Arthur Conan Doyle (Michele Soares)
Quem são as fadas? (Rebeca Pereira)
Obra de arte da semana
O período Amarniano no antigo Egito foi governado pelo faraó Amenhotep IV da décima oitava dinastia. Também conhecido como Akhenaton, foi o primeiro faraó a instaurar o monoteísmo no Egito, pois Akhenaton reverenciava a um único deus, o rei-sol Aton. Mais tarde, o politeísmo seria restaurado por seu filho e sucessor, o faraó Tutancâmon. O período em que Akhenaton governou foi muito prolífico para a produção artística e influenciou para sempre a arte do Egito antigo, dando mais incentivo ao naturalismo. O busto da rainha Nefertiti, esposa de Akhenaton, foi produzido durante esse período e descoberto em 1912, durante expedições europeias no Oriente Médio, por uma equipe de arqueólogos alemães liderados por Ludwig Borchardt, que encontraram um sítio em Tell el-Amarna. Esse sítio ficou conhecido como Ateliê Tutmés.
O busto possui cerca de 50 cm de altura, foi feito de calcário e tem cerca de 3.400 anos de idade, datado de aproximadamente 1345 a.C.. Após sua descoberta, foi levado para a Alemanha, onde permanece até os dias de hoje. O busto de Nefertiti atualmente é uma das peças mais citadas no que diz respeito ao debate sobre repatriação de obras de arte, e se encontra no Neues Museum, localizado na cidade de Berlim.
O Neues Museum permaneceu fechado até 2009, por conta dos danos causados durante a Segunda Guerra Mundial. A mais famosa coleção do museu é composta de peças do Egito antigo, especialmente do período amarniano, a ponto do Neues Museum ser conhecido como “Museu Egípcio”. Dentre as diversas peças, a mais famosa segue sendo o busto de Nefertiti.
O busto da rainha egípcia é considerado pelos alemães como uma espécie de símbolo cultural de Berlim e a peça mais preciosa de toda a coleção arqueológica da antiguidade egípcia que o país detém. Por conta disso, a repatriação da peça, que é solicitada pelo Egito há muitos anos, sempre é negada. Se o museu é por excelência um lugar de memória e geralmente fala sobre as memórias que não estão mais vivas em sociedade, como pode um objeto tão essencial para a história do Egito antigo ser considerado um símbolo cultural de Berlim e seu país natal não ter direito nenhum sobre ele?
As autoridades egípcias exigem sua devolução desde a década de 1920, quando o busto foi levado “legalmente” do país, mas permaneceu escondido por diversos anos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o busto foi mudado de localização diversas vezes, mas nunca saiu da Alemanha. Foram abertas discussões e acordos diplomáticos para devolver a peça ao seu país de origem. Entretanto, o próprio Hitler se recusou a devolver o busto. Em uma matéria da revista Veja de 2011, autoridades alemãs reiteraram que o busto está de forma legal no país e que o Egito não tem direito legal de reclamá-lo.
Segundo as autoridades alemãs, uma das principais razões para que a peça não seja repatriada é a ideia de que o Egito não teria condições financeiras para manter um objeto tão valioso para a história da humanidade e que seria danificado no transporte. Entretanto, o governo egípcio questiona a capacidade da Alemanha de preservar o busto, que foi quase destruído durante um bombardeio na Segunda Guerra Mundial. Em 2003, outro caso ocorreu: o artefato foi perfurado para que o busto fosse integrado a uma escultura feminina de bronze que representaria o corpo de Nefertiti, na intenção de uma exposição conjunta. A exposição não apenas colocou em risco a estrutura da peça, como também foi considerada ofensiva pelo governo egípcio.
O patrimônio histórico do Egito pode ser herança do mundo, mas negar o direito de seu país de origem de obter de volta seu patrimônio por não acreditar que uma nação fora da Europa seja capaz de conservar tão importante obra é extremamente ofensivo. Na maioria das vezes, o que acontece é o contrário. O busto de Nefertiti é uma das poucas peças do Neues Museum a que não é permitido ao público tirar fotos, como se ainda estivesse sendo escondida, tal qual na época de seu descobrimento.
Dessa forma, a peça permanece em exposição, e se tornou uma parte importante da história da Alemanha, longe da vista do grande público mundial e principalmente de seu país de origem, o Egito.
Por hoje, é isto, pessoal.
Lembrando que estamos lendo A casa dos espíritos, da Isabel Allende, no Clube do Livro QC - caso alguém queira participar.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraço,
Acho muito louco que me lembro da época em que VOCÊ, Mia, leu esse livro, hahaha. Na mesma época assisti e li Morte em Veneza. Foi uma experiência estranhíssima, e ao mesmo tempo eu mergulhei na história. Agora lendo sobre o TEMPO, meu assunto favorito, em A Montanha Mágica, terei que mergulhar nessa história também.
Babi, que ótima essa discussão de repatriação. É o grande dilema da museologia e dos "grandes museus". Por mim repatriava tudo, foda-se. Mas, claro, é uma discussão complexa que dura séculos, e pelo jeito vai durar muito tempo também. Lembro de minha professora, que disse que participou de um curso sobre isso no MASP. Sagitariana que é, afrontou com uma pergunta lógica e sábia: "e vocês, vão devolver as obras de arte africana que deveriam estar enterradas, como a tradição manda, e não expostas?" - sorrisos amarelos, resposta nenhuma. Os museus, assim como toda grande instituição, reproduzem esse discurso "para inglês ver" de cosmopolitismo, história mundial, "precisamos falar sobre"... mas na realidade é só discurso para atrair um público "engajado". São instituições mantenedoras, conservadoras, políticas. Amo trabalhar com museologia, mas infelizmente é isso. Já dizia o velho Karl: "Tudo que é sagrado é profanado".