Querido leitor,
A responsabilidade de ser quem se é é que não há onde se esconder. Não há desculpas sob o sol da consciência. Se você se conhece, você sabe que são as suas reações que determinam a sua vida. As situações podem ser desafiadoras, e o mundo certamente não facilita para ninguém, mas isso não nos exime da nossa responsabilidade pessoal. É, como dizem os ingleses, a bittersweet thing, algo agridoce. Ser responsável por si mesmo é belo e solitário.
Tenho andado em silêncio. No meu silêncio, converso muito comigo. As árvores me fazem companhia. Sinto que só estou em perfeito equilíbrio quando estou em meio a árvores, com raios de sol batendo levemente na minha pele, entremeados pelas sombras das folhas, que balançam a um vento gentil do final da primavera. Ultimamente, sempre que tenho tempo, sento debaixo de alguma árvore e simplesmente fico ali, parada, ouvindo o vento, existindo e me sentindo parte do grande mundo que nos rodeia. Nesses momentos, os pássaros chegam perto de mim, pousam ao meu lado, passam pelos meus ombros, cantam belas canções. Borboletas têm me seguido por toda parte. Me sinto emocionada, pois isso me mostra que a natureza não me vê como uma ameaça — os animais entendem que podem estar em paz comigo, e eu também estou em paz com eles.
Frequentemente nesses momentos me pergunto como é possível ser infeliz num mundo onde há árvores e pássaros e borboletas. A natureza tem sua própria canção, e o umbigo do mundo expira aliviado, expandindo-se quando paramos para ouvir o ritmo ao nosso redor.
Então, volto à vida comum repleta de correria, grosseria, gritos e incompreensão. Lamento pelo rumo capitalista no qual vivemos e que destrói as nossas sensibilidades, nos obrigando a caminhar de forma acelerada, a calçar nossos melhores tênis de corrida (que devem, além de tudo, ser bonitos, para saírem bem no Instagram) e sermos impessoais, maldosos, cínicos. Não quero ser assim. Mas estar em equilíbrio é também entender que estar vivo e ser parte do mundo é viver no seu tempo, e este é o tempo que temos. Ainda que eu não concorde com ele e que me mantenha fiel àquilo em que acredito, preciso andar com cuidado na linha tênue entre o mundo natural e o mundo artificial, pois faço parte de ambos.
Um dos desafios de 2024 tem sido aceitar a dualidade — não apenas essa, mas algumas que me ficaram muito claras ao longo do ano. Há algum tempo, peço sempre para ser uma pessoa melhor. Contudo, talvez o meu melhor esteja em aceitar as minhas imperfeições. Não enaltecê-las com orgulho, como se fosse uma ofensa pensar em mudar aquilo que não é bom. Mas também exercitar a compaixão por mim mesma, me olhar com amor, tratar de mim como parte da natureza a qual tanto amo. Se o pássaro canoro que embala os meus dias também é predador de uma pobre minhoca que mal pode arriscar-se a tomar um pouco de sol antes de ser devorada pelo animal cheio de penas cujo bico a dilacera, também eu posso aceitar que os meus lados afiados não diminuem as coisas boas que em mim existem. Ainda quero ser melhor, pois o mundo é um lugar difícil o suficiente, e não quero contribuir de maneira intencional com o sofrimento que infligimos aos outros. Contudo, no processo, não posso esquecer de ser gentil comigo mesma também e de respeitar os meus limites.
Isso é conhecer-se. Isso é responsabilidade. É belo e solitário, mas é o único caminho saudável em direção ao equilíbrio.
“I’ve been out walking
I don’t do too much talking these days
These days
These days I seem to think a lot
About the things that I forgot to do
And all the times I had
A chance to
[…]
These days I seem to think about
How all these changes came about my ways
And I wonder if I’d see another
Highway
[…]
I had a lover
I don’t think I’d risk another these days
These days
And if I seem to be afraid
To live the life that I have made in song
It's just that I've been losing
So long
[…]
These days I sit on cornerstones
And count the time in quarter tones to ten
Please don’t confront me with my failures
I had not forgotten them”
Nesse meu silêncio, havia esquecido que para escrever basta escrever. Ainda haverá mais uma edição da newsletter este ano, uma edição especial de final de ano, mas respeitarei o meu silêncio por mais um tempo, pois o universo é cíclico e eu também. O solstício se aproxima, e logo o sol brilhará mais intensamente.
Com carinho,
Mia
Seu texto me lembrou do poema "Borboletas", do Manoel de Barros. Esse mundo outro das "árvores e pássaros e borboletas" parece cada vez mais distante do dia a dia e por isso mesmo cada vez mais necessário.
"Tenho andado em silêncio. No meu silêncio, converso muito comigo. As árvores me fazem companhia. Sinto que só estou em perfeito equilíbrio quando estou em meio a árvores, com raios de sol batendo levemente na minha pele, entremeados pelas sombras das folhas, que balançam a um vento gentil do final da primavera."
que texto bonito!