#26 - Aos que esperam
"tempo, deixe-me desaparecer. então, o que separamos por nossa própria presença pode ser unido." (audrey niffenegger)
Querido leitor,
Existe um conceito grego chamado “homophrosyne”. Em seu significado habita a relação de Odisseu e Penélope — ele, que passou 20 anos tentando voltar para casa; ela, que por ele esperou no palácio de Ítaca. Odisseu é conhecido como um homem de pensamento ágil — mas sua esposa não fica para trás. É ela, inclusive, a única personagem da Odisseia capaz de ser tão ou mais esperta do que ele. De muitas formas, eles partilham a mesma mente — eles sentem um ao outro.
Quando Odisseu finalmente volta para casa, encontra seu palácio repleto de pretendentes, todos exigindo que sua esposa, Penélope, escolha o melhor dentre eles e case novamente. Odisseu, disfarçado, não revela a ela sua verdadeira identidade; todavia, ao invés de acreditar que, após 20 anos de sua partida, a esposa já o pensa morto e tem ou está pronta para ter um relacionamento amoroso com outro, Odisseu fica encantado ao perceber, numa breve troca de olhares, que Penélope na verdade está enganando os pretendentes para ganhar tempo. O termo “homophrosyne” fala de quando duas pessoas sentem e pensam as mesmas coisas, ou, ainda, numa interpretação mais ampla, quando são capazes de sentir os sentimentos uma da outra. Tal termo foi utilizado para descrever o fio que une Odisseu e Penélope — ainda que 20 anos e muitos desafios os estivessem separando, eles pensam e sentem as mesmas coisas, eles são um só.
Vlahos diz em “Homer’s ‘Odyssey’: Penelope and the case of early recognition” que Odisseu e Penélope têm tanta homophrosyne um com o outro que ela já o havia reconhecido muito tempo antes de o reconhecimento oficial dar-se nos cantos. Mesmo quando ela havia apenas recebido o recado de Eumeu, ela sabia que aquele estrangeiro era seu marido disfarçado — mas ainda não podia dizê-lo. Foram muitos os anos da espera — talvez fosse melhor não acreditar em seu coração. Ela, tão astuta quanto Odisseu, deixou a situação assentar-se — e permitiu-se habitar o mistério, permitiu crescer a pequena dúvida em seu íntimo, permitiu o teatro de Odisseu, fazendo ela também seu teatro. Ela ouvira Atena, afinal de contas — ela ouvira os deuses. E Penélope está longe de ser uma mulher desatenta. Além disso, ela conhecia seu próprio coração — coração este que era o mesmo de Odisseu, pois eles são a mesma pessoa. E durante muitos cantos, eles fingiram um para o outro que não sabiam o que estava acontecendo, embora ambos soubessem exatamente o que se passava na mente e nos sentimentos do outro.
Penélope é a que espera. Penélope esperou por 20 anos — ouviu notícias, presságios, mentiras; teceu a mortalha, contou outras mentiras, protegeu seu coração; ouviu os deuses, cuidou da casa, chorou à noite. Quem espera tantos anos pode esperar mais um pouco. Quem espera tantos anos pode, ao sentir-se enlouquecer pela certeza do reconhecimento, esperar antes de falar — antes de abrir seu coração.
O autor do artigo diz que a interpretação de que Penélope apenas reconheceu Odisseu no canto XXIII diminui tanto o gênio do poeta, Homero, quanto a inteligência da própria Penélope. Além de concordar com o que ele afirma, também digo que enxergar Penélope sob a luz da mulher desesperada que não reconhece o próprio marido — o homem a quem ama — após tantos anos é, ainda, tirar-lhe a agência — tirar do papel ativo aquele que espera.
Quem espera sabe. E saber é doloroso. Quem sabe tem consciência de que as coisas não dependem apenas do reconhecimento, mas também do tempo. Olhar o amor e senti-lo é reconhecer o destino — mas trilhá-lo é caminho, e caminho leva tempo. Esse tempo não é passivo — quem espera tece o destino, caminha por entre os fios, costura as emendas. O amor habita o não-tempo — mas mesmo a negação do tempo é Tempo. O não-tempo não é cronológico — trata-se de eventos e sentimentos, não de dias e meses e anos. O tempo das emoções não é o tempo do calendário — e é esse o tempo de quem espera.
Mas Odisseu também espera. Ele, ao chegar a Ítaca, recebe ordens de se disfarçar, de não revelar sua identidade nem mesmo ao filho, nem mesmo a Penélope. Ele também precisa obedecer ao tempo do destino, ao tempo dos acontecimentos. Ele precisa deixar assentar a determinação dos deuses, ouvir a voz de Atena, seguir o trajeto traçado. Ele também espera. Ainda que sua espera nos pareça mais ativa, pois ele é o aventureiro que encontra o ciclope e os feácios, Circe e as sereias, ele chora todos os dias. Odisseu frequentemente é encontrado chorando em algum canto, se perguntando quando a espera terminará, quando poderá voltar para casa, quando verá Penélope novamente. Todos esperamos pelo tempo do destino.
O engraçado de saber do destino — de ouvir as vozes dos deuses, de consultar oráculos, de saber o que lhe aguarda — é que o conhecimento não abrevia a jornada. O caminho ainda é o mesmo — agora, sabendo aquilo pelo qual esperamos. E saber é doloroso. Saber nos coloca em dois tempos — o de agora e o que virá. Tendo conhecimento do que virá, o agora nos parece angustiante — mas sem o agora, não haverá destino.
Recentemente, antes das enchentes, de vários dos meus livros e do meu Kindle molharem e mofarem e eu não poder ler mais nada, li A mulher do viajante no tempo, que é um reconto moderno da Odisseia. Esse livro me espreita há uns 10 anos. Lembro de passear pelos corredores da biblioteca da faculdade e vê-lo sempre, me olhando de esguelha. Uma vez, o peguei emprestado — mas não cheguei a lê-lo, sentia que não era o momento certo. Eu acredito em momento certo — para coisas, pessoas e situações. Para leituras também: os livros nos chamam quando suas histórias precisam falar conosco. Fiquei feliz, embora não tenha estranhado, que logo após a leitura da Odisseia, no início do ano, tenha ouvido o chamado justamente desse reconto sem saber que tratava-se de um reconto. Não costumo ler sinopses de livros, então não sabia o que esperar daquele, exceto o fato de ter viagem no tempo no meio (o que já me conquista sem precisar de muita explicação, honestamente); não fazia ideia de que a autora, Audrey Niffenegger, havia bebido do vinho grego ao escrevê-lo. Foi uma grata surpresa.
A Odisseia ganhou muitos recontos ao longo dos anos. Não é à toa: as aventuras de Odisseu na sua jornada de volta para casa são fascinantes. O modo de vida grego da Antiguidade também o é: como todo clássico, ler um texto tão antigo nos transporta para um mundo que não mais existe. Mas também como todo clássico, há algo nele que permanece e dialoga conosco até os dias de hoje. Um desses diálogos diz respeito à espera.
Esperar é sentir o tempo. Não se trata de um momento de diversão, tampouco de uma ocupação banal: esperar é sentir escoarem lentamente as areias do tempo e não poder fazer nada exceto viver. Mas viver já é muita coisa. O sábio torna-se sábio porque aprendeu a esperar — não discute com o tempo, apenas vive o instante presente. Contudo, nunca estamos presentes. Em nossa vida tão atarefada, corremos de um lado para outro, e nossa mente também disputa maratonas diárias, decidida a acompanhar os acontecimentos do dia e entender as tramas e os fios que as formam, a entender o que acontecerá. Nem tudo precisa ser entendido, mas nós somos assim — antecipando cada minuto como se pudéssemos viver mais ao esticar o tempo. Não podemos. E assim também não vivemos o presente.
Viver o presente é o desafio de quem espera. Como viver o agora sabendo que há algo pelo qual esperar? A mente divide-se: a presença do momento atual não é o suficiente; é preciso correr quilômetros na escada do Tempo. Impossível, mas tentamos. É o que acontece com Clare e Henry.
O reconto escrito por Audrey Niffenegger trata da história de Clare e Henry e de sua vida juntos através de décadas. Como o título já entrega, Henry viaja no tempo — basicamente, dentro da própria linha do tempo, sendo puxado para eventos ou pessoas marcantes em sua trajetória. Por isso, Clare conhece Henry desde criança, enquanto ele só a conhece já adulto. Ela esperou a vida inteira por ele: sabendo de sua condição temporal, Clare aguardava pelo retorno dele e, mais importante, pelo momento em que ela finalmente o encontraria em seu tempo cronológico, um Henry jovem que ainda não a conhecia, mas que seria o homem que, ela sabia por revelação do futuro, casaria com ela.
Mas aguardar o futuro é também temê-lo, pois assim que chegar o momento pelo qual tão ansiosamente esperamos, sabemos que agora a espera mudou de lado, e trata-se de uma agonia pelo final iminente. Tudo acaba — e tememos perder aquilo pelo qual tanto ansiamos. Porém só perdemos aquilo que não é vivido. O que uma vez existiu sempre existirá, já que nos transforma, vivendo em cada gesto em vidas múltiplas nos ecos das pessoas que amamos.
O destino a gente escreve com o corpo. Olhamos para as estrelas, mas é na fisicalidade que encontra-se o futuro. Por mais que ouvisse do futuro, Clare ainda precisaria vivê-lo. A espera é um estado de alma — mas o corpo precisa viver a fisicalidade do existir neste mundo para que sua realidade material possa um dia estar par a par com seus pensamentos. Por mais que soubesse que Henry estava chegando, ela ainda precisava esperá-lo. E esperar inclui viver o agora — a espera é ativa; esperar é estar em movimento, é manter-se ocupado sem perder a esperança. É difícil saber esperar, pois se o destino se escreve com o corpo, a espera se tece com o cotidiano.
Ao se conhecerem, Clare, que já havia tido vislumbres do futuro, encontra um Henry que não fazia ideia dela. Ainda assim, há um fio que os une, e, tal qual Odisseu e Penélope, mesmo sem o reconhecimento completo, existe um eco na alma que diz ali estar a pessoa pela qual o outro esperava:
“Fico sem saber o que fazer porque estou apaixonada por um homem que se encontra na minha frente sem ter a menor lembrança de mim. Tudo está no futuro para ele. Quero rir de como a cena toda é estranha. Estou imersa em anos de conhecimento de Henry, enquanto ele me olha perplexo e temeroso.
[…]
— Venha tomar um café comigo, ou jantar…
Naturalmente, ele tem que dizer sim, esse Henry que me ama no passado e no futuro e deve me amar agora, ouvindo o eco de outro tempo. Para meu imenso alívio, ele diz mesmo sim.”
(A mulher do viajante no tempo, Audrey Niffenegger)
É uma situação delicada. Ela não pode dizer a ele o que sabe do futuro; ele conta de suas aventuras, sem saber ao certo que ali está aquela por quem procurou, mesmo inconscientemente, durante todo aquele tempo. Mas ambos sentem. Ele também, ainda que não saiba explicar: “Sento no reservado de frente para ela. Estou fascinado. Esta mulher me conhece; não é uma mera conhecida de minhas aventuras futuras”.
Queremos combater o nosso próprio coração. A luta é vã: os sentimentos sempre vencem; se não forem expressados da forma como devem ser, acabarão se tornando o contrário, uma barreira assustadora que, ao invés de proteger a pessoa, a isola de todas as outras, tornando a vida dela e a de quem convive com ela muito amarga. Não há luta contra os sentimentos: precisam ser vividos. E sentidos os sentimentos, esperar não é escolha: é caminho.
“Nosso amor foi o fio no labirinto, a rede embaixo de quem caminha na corda bamba, a única coisa verdadeira e confiável nessa minha vida estranha. Esta noite, sinto que meu amor por você tem mais densidade neste mundo do que eu mesmo tenho; como se pudesse permanecer depois de minha morte e te rodear, te proteger e te segurar.
Odeio pensar em você esperando. Sei que você andou me esperando a vida inteira, sempre sem saber ao certo a duração dessa espera. Dez minutos, dez dias. Um mês. Que marido inseguro eu fui, Clare, como um marinheiro, Ulisses sozinho e fustigado pelas ondas, ora astuto, ora simplesmente um joguete dos deuses!”
(A mulher do viajante no tempo, Audrey Niffenegger)
Esperar é condição de quem vê com clareza — quem não pode fugir do destino, pois o enxerga a cada passo, a cada folha de árvore dançando ao vento. Esperar não é uma escolha — é o próprio caminho.
O amor é condição de quem vê — mas quem é visto desperta também a visão. A partir do momento em que nos sentimos vistos, vemos com mais clareza — os sentidos se aguçam e somos capazes de esquadrinhar uma multidão até encontrarmos aquele cujos olhos sonharam os nossos. O amor nunca é despertado sozinho. Mas é difícil acreditar nisso.
Nesse andar do tempo, esquecemos que o amor nunca é solitário. O amor simplesmente é. Ele nunca é despertado de forma solitária em apenas um coração. Mas cada um escolhe senti-lo e expressá-lo ou não. Daí nascem as tristezas, o desânimo, a raiva do mundo — do não permitir o amor existir quando o sentimos. Se eu te amo foi porque o teu olhar em encontrou. Se eu te amo é porque nossas almas conversam.
O que se faz quando não se pode fazer nada?
Se vive.
“Às vezes, me pergunto se essa disposição, essa esperança, impede que o milagre aconteça. Mas não tenho escolha. Ele vem, e eu estou aqui.”
(A mulher do viajante no tempo, Audrey Niffenegger)
Este texto era para ter saído ontem, mas tive algumas questões que me impediram. Porém cá estamos. Tenho tentado sair um pouco do torpor no qual as enchentes no RS me deixaram — escrever é a minha forma de organizar o mundo, então retomei este texto, que havia começado a escrever há alguns meses, e o costurei para participar do Newsletteraço, um evento de divulgação de newsletters que reuniu muita gente nova e uma galera que já tá aqui faz algum tempo. Adoro esses movimentos, me lembram demais os primórdios dos blogs, e não pensei duas vezes antes de topar participar. Infelizmente, não consegui cumprir o prazo certinho de publicar esta edição ontem (29/05), mas espero não estar tão atrasada assim.
De qualquer forma, fica aqui a recomendação para vocês conferirem as newsletters dos demais participantes:
É isto, queridos.
Vou tentar escrever mais por esses dias — não prometo ter uma frequência maior do que mensal por aqui, mas escrever me faz bem, e sinto falta de conversar com vocês. Falando nisso, tanta coisa aconteceu nesses tempos que ainda não respondi a todos os comentários e e-mails — mas farei isso logo, estou retomando a minha vida.
Se cuidem.
Abraços,
Mia
gostei demais <3 quem espera sempre alcança?