#22 - O tempo do amor
"love — is anterior to life, posterior — to death, initial of creation, and the exponent of breath." (emily dickinson)
Querido leitor,
É manhã do dia 18 de dezembro. Faz calor — um calor terrível, típico de Porto Alegre no verão. Há algumas árvores enormes no pátio de casa, e mais nas casas vizinhas — posso ouvir os pássaros cantarem nelas. Todas as manhãs eles cantam, junto do galo, que canta o dia inteiro (e a noite também). É uma sinfonia de aves por aqui.
Finais de ano são sempre esquisitos. E este, especialmente, está sendo estranho. Quando a pandemia começou, senti de forma muito palpável o que chamei de “tempo sem tempo”. Metade dos meus textos de 2020 para cá falam sobre isso — essa sensação de habitar um não-tempo, de existir, fazer coisas, mas não perceber as sombras do tempo. Lembro de Keats falando das melodias espirituais do não som, e penso que a música — o som — preenche o ar, que nos é invisível, e também nos faz acompanhar a passagem do tempo, pois nossos batimentos cardíacos se alinham à batida da música que estiver tocando. Mas como se alinhar ao tempo? Nele existimos, mas dele não fazemos parte. Passamos por ele, ou ele passa por nós, e, contudo, o que dele realmente sabemos? O tempo, que existe tanto numa direção quanto na outra, é real. Para ele, se o antropomorfizarmos, somos tão breves que mal existimos. Nossa passagem por seus infinitos salões só deixa marcas em nossa perspectiva — o tempo, todavia, segue incólume, inalterável, sempre na mesma batida — mas nem sempre sabemos qual é o ritmo desse passo.
Faz silêncio agora. Um silêncio quebrado apenas por uma chuva mansa caindo no telhado, pelo farfalhar do vento nas árvores e pelo galo do campo ao lado, que canta incessantemente. É muito silencioso aqui, e é fácil perder-se no tempo — é difícil lembrar das diferenças entre pessoa, árvore, bicho, vento. Abro a janela, olho a natureza ao meu redor — as árvores enormes no quintal, o maracujazeiro, o limoeiro, e outras tantas —, ouço as aves cantarem, sinto uma delicada brisa me envolver, e quase esqueço que meu papel no tempo — neste tempo — é outro, e não ficar contemplando a natureza e assumindo a parte humana que é também natureza.
É tarde do dia 22 de dezembro. Tivemos dias amenos, mas o calor voltou — agora em sua própria casa, o verão. É dia de solstício. Geralmente, se escrevo em mais de um dia, apenas costuro o texto, sem marcar o tempo passado entre as costuras. Mas respeitando o Tempo, que se faz tão presente agora, especialmente agora, resolvo marcá-lo como se uma entrada de diário isto fosse. Faz calor e é solstício.
Há meia hora, sentei na frente do computador, abri o e-mail, fechei os olhos, respirei fundo e disse para mim mesma: “Bem, Mia, vamos encarar a solidão”. Então vi que havia ali a nova edição da newsletter da
com o título “A arte de perder”. Senti que era caminho do destino lê-la, e a li. Nela, Ana fala sobre como todos perdemos — e precisamos nos acostumar a isso. A perda, afinal, faz parte da vida.Passei os últimos dias sentindo uma atmosfera de tensão quase palpável no ar. Sentia que este fim de ano era importante — mas não sabia o porquê. Há mudanças que podem ser sentidas no vento. Não tive de esperar muito: a mudança veio, e agora sinto que a tempestade passou e o que resta é terra macia encharcada de chuva. Se mergulho as pontas dos dedos nela, ficam buraquinhos no chão — mas ela logo se amolda novamente e volta a ser terra, sem a escultura efêmera do toque de minhas mãos. A perda é constante, mas a vida é bonita — ainda que efêmera, ou talvez justamente por isso.
O galo canta novamente e não me sinto só. Há vida lá fora — há vida aqui dentro. As coisas têm seu ritmo, e nós temos nosso ciclos. Ser rodeada pela natureza me fez olhar o tempo de uma maneira diferente — me fez olhar a solidão de uma maneira diferente. Esses tempos, escrevi um poema sobre isso, poema que tem me servido de mantra nos últimos dias. Gaia é capaz da força geradora em solidão — mesmo não precisando, ela escolheu um consorte, nascido de si própria, e teve Cronos, o Tempo. Mas ela mesma inicia e encerra seus ciclos ao ajudar na derrota da tirania de Cronos. O Tempo é subserviente à sabedoria da natureza. E é Gaia o título de meu poema.
A natureza começa e encerra seus ciclos, apenas para começar de novo — quem sou eu para me opor a isso?
No ano passado, fui convidada para falar numa das mesas do evento O Texto & o Tempo, que reuniu uma galera de newsletters para conversar sobre a questão do escrever na internet. Nisto, foi criado um grupo de newsletters, e este ano, assim como no ano passado, participo do amigo secreto organizado por lá. A ideia é que cada um dê de presente uma carta para seu amigo secreto, baseada em leituras feitas de textos da pessoa em questão — no ano passado, minha amiga foi a
, a quem escrevi uma carta respondendo ao texto dela sobre Carol, o filme de 2015, e me empolguei falando de amor. Este ano, a minha amiga secreta é a .A partir daqui, leitor, você estará lendo a correspondência alheia.
Querida Maju,
Eu não sou muito boa em interagir em grupos. Introvertida que sou, me é sempre esquisita a ideia de interromper uma conversa e me inserir no assunto, especialmente se não conheço as pessoas direito. Além disso, embora eu trabalhe na internet e passe boa parte dos dias utilizando de espaços virtuais, como boa parte de nós hoje fazemos, aprecio o tempo offline, o tempo de olhar para fora, de apenas contemplar as folhas das árvores e ouvir os pássaros cantando. A vida não é os espaços virtuais que construímos e habitamos — embora eles façam parte da nossa contemporaneidade, precisamos aprender a desacelerar. Portanto, ainda não conhecia a tua newsletter — mas sinto que a conheci na hora certa.
Ontem, uma amiga me tirava o tarot. Enquanto a
me lia as cartas, ela dizia que eu estou aprendendo a respeitar os ciclos do tempo — e lembrava, inclusive, de um evento ocorrido este ano que poderia ter sido fonte de mais estresse não fosse o fato de que eu estava calma. Aceitar os inícios e fins da natureza nos faz ficar calmos em meio a tempestades — o que estiver bem enraizado permanecerá, o resto teve sua beleza uma vez, mas mais beleza virá.Os pássaros cantam enquanto te escrevo. Eles vêm até a minha janela, olham o mundo de dentro e decidem voltar lá para fora, onde tudo é amplo e natural. É dia de solstício, e somos convidados a lembrar do Tempo.
Tu escreveste sobre o tempo em uma das edições da tua newsletter. Na edição sobre o tempo das relações, tu falas sobre Orgulho e preconceito, livro da Jane Austen, que, por acaso, fez aniversário esses dias — aniversário dos mortos, estas datas cheias de vida.
Há uma pergunta que tu fizeste no teu texto que conversou muito com o que eu mesma venho me perguntando: o que a gente perde quando não aceita que algumas histórias precisam de mais tempo? Orgulho e preconceito é uma dessas histórias lentas — não lenta apenas porque ambos demoram a entender seus sentimentos, mas lenta também porque o tempo era outro. E nós, como seres no Tempo, olhamos para Darcy e Elizabeth e nos reconhecemos neles em sua trajetória entre Tempo e Amor.
Lembro da primeira vez que li Orgulho e preconceito: tinha 10 anos e li uma versão adaptada para crianças. Não havia gostado do Mr. Darcy. Aos 15, noutra leitura, ainda não gostava dele — achava o personagem presunçoso e antipático. Aos 24, li o livro inteiro como Jane Austen quis, e passei a amar a história — história de que já gostava por causa da série da BBC de 1995 e do filme de 2005. E me percebi eu mesma o Mr. Darcy, introspectiva e cuidadosa ao falar o que sinto, cuidadosa ao deixar as pessoas se aproximarem.
Hoje é 24 de dezembro. É véspera de Natal — faz calor. As pessoas já começaram a soltar fogos na vizinhança, o que odeio por muitas razões. Mas fizemos sorvete natural de banana, com bananas colhidas diretamente da bananeira do pátio, o que amo.
Posso escrever sobre muitas coisas, mas é a espera do tempo do amor que me angustia. Todos os dias, faço uma prece: para ser mais gentil — com os outros e comigo mesma. Acho que a última parte é a mais difícil — amar a si mesmo é um desafio. Conhecemos tanto os nosso defeitos que às vezes nos parece impossível sermos dignos de amor, nos parece impossível sermos objetos de amor do outro. Como esperar o tempo do amor? Não esperamos: amamos. O tempo do amor se faz amando.
Há uma passagem em O Exorcista — o livro — na qual o padre Merrin fala para o padre Karras que achava impossível amar as pessoas. Embora seu dever como padre fosse exercer o amor, ele sentia horror a certos indivíduos, e não conseguia amá-los, falhando em seu dever. Então um dia se deu conta de que Deus jamais pediria a ele algo que ele não pudesse realizar, e percebeu que não se trata de esperar sentir o amor pela humanidade, mas sim de agir com amor. Nós somos pessoas, afinal de contas, e temos nossas questões — não somos perfeitos. Mas isso não deveria nos impedir de agir com amor. O tempo do amor é todo o tempo. Esperar é tarefa de controle do ego.
É o ego um dos protagonistas de Orgulho e preconceito. É ele quem afasta as pessoas, baseado em classe social, educações diferentes e padrões artificiais. Também é o ego quem nos segura pelo braço, impedindo-nos de nos colocarmos no lugar do outro. Sem essa empatia, não conseguimos entender ninguém, e ficamos para sempre isolados em nossa redoma, acreditando que temos toda a razão e que o mundo é apenas o nosso pátio — lá fora há apenas selvagens e horrores, e é melhor não nos aventurarmos muito. Podemos sair machucados.
Como viver o amor quando nos deixamos levar pelas barreiras imaginárias que dividem este mundo? Se esperarmos que o outro seja perfeito, jamais amaremos ninguém; tampouco somos perfeitos, mas ainda assim há quem nos tolere as fraquezas e nos olhe com carinho. O amor exige a negação do tempo — porque o amor só existe onde o tempo não importa. Vivos ou mortos, nossos amores seguem conosco.
Amar nos faz humildes. Nos faz olhar para nós mesmos e contemplar todos os nossos defeitos. E quando nos desfazemos das máscaras do ego — da arrogância, do sarcasmo, das mil defesas que colocamos entre nós e o mundo —, descobrimos que amamos independentemente de sermos amados. Isso dói, mas é dor de ego — o amor é mais do que isso, e só ele importa, no final das contas.
Não nos damos tempo de sentir o amor porque condicionamos o amor a uma visão capitalizada do que o outro nos oferece em troca. Somente na negação do tempo — na negação do que se perde quando se abre para a possibilidade do amor, ainda que este amor talvez não seja correspondido — é que encontramos paz. O amor nos transforma.
Quando o Mr. Darcy se dá conta de seus erros, quando o amor o coloca de frente a um espelho no qual ele enxerga tudo o que tem feito de errado, no qual pode ver as marcas de seu ego exacerbado, ele muda. A mudança dele não é na expectativa de ficar com Elizabeth — como quem ama, ele tem esperança, mas sabe que a possibilidade é mínima, uma vez que ela já o havia rejeitado antes —, mas sim desencadeada pelo fato de que o amor o tirou do Tempo; em um momento, toda a estrutura social do ego, que artificializa os sentimentos, desmoronou. Então ele finalmente enxergou a si mesmo como realmente era: desprovido de sua máscara do papel social a ele incutido desde a infância, ele agora viu que Elizabeth era tão sua igual quanto qualquer um. Mergulhando na atemporalidade dos sentimentos, ele mudou a si mesmo, porque uma vez vista a sombra sabemos o formato que ela tem. Ao final da história, o casal não fica junto porque ele desfez seus erros, mas porque ambos entenderam que suas máscaras sociais não significam nada perante o não-tempo do amor — entendido isso, se pode agir com amor ao invés de esperar que o outro nos sinta amor. Ao manifestarmos o amor em ações, o mundo muda. O Tempo não tem tanta importância, e as pessoas passam a ser o foco. Se as estruturas que nos amarram existem, existem no sentido presente, no tempo de agora. Mas o amor não é o agora — o amor é o sempre.
Digo isto para mim mesma como uma prece, como quem sente a chuva suave cair no rosto e não sabe mais se o que está pingando na blusa é chuva ou lágrimas. Assim como me identifiquei com o Mr. Darcy em sua introspecção e cuidado para não deixar ninguém se aproximar, também com ele me identifico em sua jornada de abertura para o não-tempo do amor. Após certos eventos no início do ano, eu escolhi não me fechar. Não que eu conseguisse fazer isso direito antes, mas passei boa parte da minha juventude tentando me proteger — porém não vou mais fazer isso. Eu vou amar as pessoas mesmo que não seja amada de volta — porque o amor não é questão de merecimento. Eu vou me abrir, não vou permitir que experiências dolorosas me tornem uma pessoa amarga, desconfiada, sarcástica em relação a afetos. Tenho feito isso, e, se não estou mais feliz do que antes, ao menos não estou infeliz — e sinto paz. Embora não controle o amor, aceito que o desejo pelo controle é artificialidade do ego, aceito que só posso sentir os meus sentimentos e agir com amor. Não vou fugir do amor só porque ele não cabe no meu pátio.
Saio deste ano com algumas memórias dolorosas, mas mais aberta e sentindo paz. O tempo do amor é o sempre — quem sou eu para querer impedir a eternidade?
Com carinho.
Obra de arte da semana
No presente momento que escrevo este texto, o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro se encontra fechado para reforma. Não me recordo há quanto tempo, o tempo é um deus estranho pra mim, nunca consegui me conciliar com ele. Sei apenas que gosto muito daquele museu e sinto falta de acordar pela manhã e simplesmente decidir visitá-lo e passar o dia percorrendo seus corredores. Ultimamente, tenho sonhado muito com algumas pinturas específicas que lá se encontram, ambas de autoria de Pedro Américo. A primeira é A Batalha do Avaí, uma pintura a óleo datada de 1877. É uma dessas obras tão majestosas que você se perde em frente a ela perante sua grandeza.
Medindo cerca de 10x6m., é o tipo de pintura que faz com que o espectador consiga se imaginar fazendo parte daquela composição. Quando sonho com ela, me vejo à sua frente, observando quase em transe, me sentindo tão pequena e perdida no tempo, na expectativa de que algo aconteça ou que alguém apareça, como se esse alguém estivesse me observando há muitos séculos, aguardando pelo momento propício, assim como eu. Uma sensação muito parecida que, imagino, Mina Murray sentiu ao ouvir a voz do Conde Drácula em sua mente dizendo: “See me, see me now”.
Essa é a pintura que tenho visto em meus sonhos quando estou dormindo, não entendo muito bem o porquê, afinal, eu não tenho nenhum apego emocional a ela, mas os sonhos têm se repetido. Também lembrei da pintura que tenho visto em meus sonhos despertos, que, pelo que me lembro, se encontra ao lado da outra obra. A noite acompanhada dos gênios do estudo e do amor é também uma pintura a óleo de Pedro Américo, datada de 1883.
A composição apresenta uma mulher, uma alegoria para representar a Noite, e, como o título indica, ela está acompanhada de dois pequenos anjos — um deles se encontra com um arco e flecha pronto para flechar um casal apaixonado ou um pobre infeliz que terá de lidar com Eros sozinho e viverá em uma eterna espera. Do outro lado, o pequeno anjo traz consigo uma tocha e um livro, lendo com atenção e calma. A Noite, no centro da composição, parece ter encontrado o equilíbrio perfeito entre os gênios do amor e do estudo. Na verdade, eles parecem seus parceiros leais, como se a racionalidade e a emoção tivessem de caminhar juntas. Me pergunto por que tenho pensado tanto nessa pintura, talvez porque eu não tenha o mesmo equilíbrio a respeito do amor e dos estudos que a Noite tem, talvez porque eu devesse ter, talvez porque essa pintura me faz sentir que é possível ter ambos, mesmo que eu me dedique inteiramente a um e descarte ou até mesmo renegue o outro. Talvez o alguém que sussura em meus sonhos adormecidos exista e eu precise aprender a não ser tão racional.
Por hoje, é isto.
Ainda pretendo escrever mais uma edição da newsletter neste ano, ou no início do ano que vem, para fazer a retrospectiva de 2023 — mas, respeitando eu mesma o meu tempo, veremos como isso se dará.
Gostaria, antes de encerrar esta edição, de agradecer à amiga secreta que me tirou,
, que me escreveu uma linda carta sobre — isso mesmo — o Tempo. Compositor de destinos, ele se faz presente muito fortemente neste final de ano, e não acredito que tantas pessoas tenham escrito sobre ele à toa. Querida, eu amei a carta, conversou comigo de muitas maneiras, e adorei conhecer a tua newsletter — como disse, eu sou meio desligada de redes sociais e grupos, então essas interações são sempre maravilhosas, momentos em que posso descobrir lugares e pessoas incríveis, como é o caso.Também agradeço a Babi, historiadora da arte que escreve a coluna “Obra de arte da semana”, que tem sido uma amiga incrível, de muitos papos, oráculos e estudos. Como esta edição é da carta de amigo secreto, eu não ia publicar a coluna da Babi agora, mas, embora a gente nunca fale sobre o que a outra está escrevendo até os textos estarem prontos, ela escreveu justamente sobre o tempo e o amor — e achei que era pra ser.
Feliz Natal, queridos! Descansem e leiam bons livrinhos. 🎄
Abraços,
Mia, fico feliz que tenha gostado da cartinha que te escrevi. O tempo parece que decidiu que quiséssemos escrever sobre ele, nos uniu lá atrás naquele evento do texto e o tempo e agora se mostra tão presente. Espero que seja generoso contigo. Um abraço apertado e o desejo que o ano que se inicia seja fabuloso!
Mia! Que alegria receber essa carta tão especial, carinhosa e cheia de beleza de presente. Tuas reflexões sobre o tempo conversam profundamente com meu momento de vida, por vezes sufocada por esse não-tempo, por vezes extasiada na profunda presença nos altos e baixos desse ano.
Mas o que mais ficou comigo foi isso: O tempo do amor se faz amando. Vou levar comigo. Obrigada e um fim de ano cheio de amor, felicidades e tempo pra você 💛