Querido leitor,
Dia desses, voltando para casa da faculdade, ao chegar no portão me virei para frente e olhei para o céu. A lua cheia brilhava num céu escuro, as árvores mal faziam contraste mediante aquele infinito, e bem na minha frente havia uma única estrela — enorme, brilhante, que não cintilava, mas se mostrava imponente perante aquela escuridão. Lembrei na hora de um poema que li quando era criança, e do qual não lembrava desde então:
“Primeira estrela que vejo,
dá-me tudo o que desejo!
Eu só desejo, estrelinha,
que sejas amiga minha.”
Ao entrar em casa após alguns minutos, pesquisei o poema e descobri que a autoria dele é de Ilka Brunhilde Laurito, uma poeta e professora paulistana. Lembro de ler esse poema dela quando tinha uns 8 anos, e achar não apenas os versos bonitos como o próprio nome da autora, cuja pronúncia faz a língua marcar bem as sílabas. Era também, ainda que eu não soubesse disso na época, eu fazendo poesia.
Sempre fui uma leitora de poesia. Não é à toa que anos mais tarde tenha me tornado uma escritora de poesia — a linguagem poética sempre me foi muito familiar. Fico pensando no mundo como linguagem poética — e a poesia como a tradução dessa linguagem natural.
Não existe nada mais humano do que ser amigo de estrelas.
A
falou de como os cemitérios nos tornam humanos — a preservação da memória, a honra aos nossos mortos, as necrópoles, essas coisas nos fazem seres humanos. Não há como discordar disso; mas vou além: essas coisas também são memória poética. O ser humano existe e a vida humana existe da forma como a organizamos em torno dessa memória poética. Se a vida fosse apenas repleta do que é útil, não haveria metade de tudo o que existe.“A poesia da terra nunca está morta.”
— John Keats
Volta e meia, lembro da voz semifaltante do legista com quem conversei há alguns anos para uma reportagem sobre corpos incorruptos (que depois acabei adaptando para um artigo no QC). A voz dele me vem à mente dizendo: “Putrefação é o estágio em que o corpo se dissolve”. Ele me explicou como funcionam os processos da morte física e o que eles significam em termos de putrefação e decomposição. Após aquela entrevista, não dormi direito por duas semanas, atormentada por todas as vívidas imagens de corpos em decomposição que ele havia descrito tão bem — e eu tenho um pensamento muito visual para conseguir escapar desse tormento.
Mas há beleza nisso. Uma das coisas que ficou comigo — que inseriu-se em minha memória poética — durante todos esses anos foi o que ele disse a respeito de algumas exumações que fez. Ele disse que enquanto os corpos se dissolvem, a pele permanece por algum tempo. E, assim sendo, as tatuagens duram por meses após a morte. Há mortos que ele exumou depois de 2, 3, 7 meses após o enterro que ainda conservavam em seus esqueletos as tatuagens ostentadas em vida. Às vezes penso nisso. Acho uma imagem bonita em meio a todo o horror da realidade física da morte.
Falar de John Keats tornou-se, com o passar dos anos, falar sobre sua morte. O último poeta Romântico e o mais jovem a morrer, Keats é a própria figura trágica, o poeta do Romantismo por essência, aquele que representa tanto os ideais elevados do movimento quanto encarnou em sua própria pele a beleza encontrada na morte.
Keats era divertido. Em suas cartas, encontramos um lado dele que não costuma ser muito explorado — o senso de humor constante do poeta, que fazia jogos de palavras e brincava com a própria situação e com as ações dos outros. Sua forma de encarar a vida era apaixonada — ele era, acima de tudo, apaixonado por arte e por literatura.
Mas também era apaixonado pela morte.
A morte o acompanhou desde a infância. Primeiro, a morte de seu pai, quando ele tinha apenas 8 anos. Depois, a mãe, no início da adolescência. Afastado da irmã, que foi criada por outra família, e sendo o mais velho, Keats terminou seus estudos sob regime de tutela de seu guardião, e tornou-se cirurgião (com licença para ser apotecário). Ser cirurgião no início do século XIX não era algo limpo — a profissão demandava uma habilidade de manter-se tranquilo perante o sofrimento e a morte, assim como ao se deparar com os aspectos mais viscerais do corpo humano. A morte, hoje em dia, é higiênica — mesmo nos hospitais, ela é ascética, o mais limpa possível.
“Ele esqueceu seu aniversário e decidiu estudar medicina. Ele aprendeu a usar sanguessugas, arrancar dentes e suturar. Ele observou cadáveres na mesa de dissecação que haviam sido comprados por três ou quatro guinéus cada dos homens que os ressuscitariam. Os corpos nus eram entregues em sacos. Keats tomou notas, e nas margens desenhou caveiras, fruto e flores. Ele se sentia sozinho.”
(Jaeggy Fleur, These Possible Lives - Essays)
Para Keats, a morte tinha cheiro, textura e som. Tendo crescido cercado de morte e tido como profissão a medicina, Keats não podia fugir de tais realidades — e isto, aliado ao olhar poético que tinha desde a infância, lhe fez ter a morte por companheira no cotidiano. A morte era vida — em meio a morte, ele via flores e frutos, a transformação de uma coisa em outra. Em meio a morte, ouvia-se a voz da natureza.
Ler literatura clássica é ouvir as vozes dos mortos.
Para Keats, a morte era como um sussurro pelo qual ele ansiava ouvir. Existe em sua poesia o polo movimento-imobilidade — o movimento era a escrita, o amor, seus desejos; a imobilidade, o existir em esquecimento, algo pelo qual temia, mas também ansiava. A natureza, tão presente em seus poemas, era ao mesmo tempo móvel-imóvel — seu rouxinol “não nascera para a morte”, mas a própria natureza alimenta-se da morte e dela é morada; nós, como seres da natureza, não podemos fazer nada exceto também participar de sua dança.
Embora temesse a morte, pois ela lhe roubaria os dias de vida e poesia — assim como a possibilidade da concretude do amor romântico —, Keats via na morte um grande alívio. Perante a morte — perante o Tempo — nada importaria. Não importaria que ele escrevesse, que ele amasse, que ele desejasse ser lido e reconhecido. Não importaria que tivesse 1.50 cm de altura, que vivesse isolado em sua solidão, ainda que sempre passeando entre círculos de amigos. Nada importaria perante o silêncio sepulcral da morte. E isso lhe trazia paz.
I
Pode a morte ser sono, se a vida não é mais que sonho,
E se as cenas de êxtase passam qual espectros?
Os prazeres transitórios semelham visões,
Mas pensamos a morte como a grande dor.
II
Como é estranho o vagar do homem na terra,
Em sua vida maldita não pode desvencilhar
O rude caminho; nem ousa sozinho entrever
Seu augúrio futuro que não é senão despertar.
(John Keats, A morte, na tradução de Alberto Marcicano e John Milton)
Pouco antes de morrer, em seu leito de morte em Roma, Keats disse para Joseph Severn, seu amigo que dele cuidava, as palavras: “Não se preocupe, Severn, e não lamente; alegre-se, pois ela veio”. Ela, no caso, é a morte — uma amiga desejada, conhecida de longa data.
Após a morte de Keats, seus amigos — especialmente Charles Armitage Brown — fizeram uma inscrição em sua lápide. O desejo do poeta foi que as palavras ali inscritas fossem apenas “Aqui jaz aquele cujo nome foi escrito em água”, todavia, seus amigos acharam que deveria haver mais do que aquilo, especialmente por sentirem que Keats havia adoecido e morrido por sua constituição delicada, que não suportara as críticas ruins feitas aos seus livros. Claro que isso não era verdade — mas eles eram seus amigos, e queriam protegê-lo mesmo após sua morte. Um deles, inclusive, travou um duelo para defender a honra de Keats — e morreu duelando. Porém, voltando um pouco, a inscrição que seus amigos gravaram no túmulo é desafiadora, dizendo: “Este Túmulo contém tudo o que foi Mortal de um JOVEM POETA INGLÊS, Que em seu Leito de Morte, na Amargura de seu Coração, pelo Poder Malicioso de seus Inimigos, Desejou que estas Palavras fossem gravadas em sua Lápide: Aqui jaz Aquele Cujo Nome foi escrito em Água”.
Tais palavras são desafiadoras, pois sugerem que foram as críticas negativas que adoeceram e mataram Keats — e que o poeta, amargo e triste, desejou apenas sumir, sem ter nem ao menos o nome gravado em sua sepultura. Todavia, isso não reflete a verdade. Keats vinha flertando com a morte desde criança. Em carta, um Keats apaixonado por sua noiva, Fanny Brawne, diz que tem “dois luxos nos quais penso durante as minhas caminhadas, a sua Amabilidade e a hora da minha morte. Ó se eu pudesse ter ambas no mesmo minuto. Eu odeio o mundo: ele bate demais nas asas da minha vontade própria, e se eu pudesse tomaria um doce veneno dos teus lábios para me tirar dele”.
Em seu poema “Wacher”, Anne Carson diz que a palavra preferida de Emily Brontë era justamente a que dá título aos versos da autora — na grafia faltando o “t”, tal qual Emily costumava escrevê-la. No poema, ela defende que Emily observava o mundo — e sendo essa observadora, não poderia deixar de fazê-lo. Ela observava o mundo e observava a vida, e observar a vida é também observar a morte. Observar a morte nos pastos, na charneca, no campo; observar a morte de animais, de frutos e flores; observar a morte dos sentimentos, do vento, das estações; observar a morte transformar-se em vida num ciclo eterno de renovação. Morte e renascimento andam juntos — o descanso é apenas uma pausa entre uma coisa e outra. Keats sabia disso.
Romântico que era, ele também observava a natureza. Sua poesia é tida como sensual não necessariamente por colocações eróticas — embora haja algumas —, mas especialmente por estar atrelada aos sentidos, ao toque, ao que percebemos na materialidade. Existe, sim, muita metafísica nos versos de Keats; contudo, o que mais existe é algo palpável. E este algo era experienciado através dos sentidos. Keats observava e interagia com a natureza. Keats observava e interagia com a morte. E por ela era apaixonado.
“No escuro escuto; por várias vezes
Que tenho sido seduzido pela suave morte,
Lhe dando ternos nomes em versos refletidos,
Para que pegasse no ar meu sutil alento;
Nunca como agora me parece tão boa a morte,
Findar à meia-noite sem nenhuma dor”
(John Keats, Ode a um rouxinol)
Ainda que não acreditasse em poderes maiores em termos de alma — e fosse um ateu convicto, tendo, inclusive, dito que se mataria naquele mesmo instante caso não melhorasse e seus amigos continuassem a falar em outra vida —, Keats acreditava na continuação. Continuamos na natureza — quando a putrefação desfaz o que de nós é mortal, transformamo-nos em outra coisa — nutrientes, semente, árvore, vida. Keats, fascinado que era por mitologia grega, via beleza na metamorfose — uma coisa que se transforma em outra, ainda existindo em essência, uma continuação do ser. Seu frágil corpo ele via transformado em um jardim de violetas — seu desejo antes de morrer. Ele disse ao seu amigo Severn que as sentiria crescer a partir dele em cima do túmulo. E lá estão até hoje, em cima de seu túmulo, um jardim de flores plantadas em sua tumba, que lhe guardam a memória e são, de certa forma, o próprio Keats.
Keats adorava a morte. A morte para ele não era a causadora de tristezas — antes, era o amor que nos levava por caminhos de solidão. Mas era uma solidão que valia a pena — uma solidão sentida pela ausência do que antes existia. Não tornava a falta mais fácil, mas a tornava significativa. Keats sentia que não teria significado em sua falta. Sentia que a noiva estaria melhor sem ele — certamente arranjaria outro par muito em breve, bonita que era, e teria uma vida melhor do que a que ele poderia lhe proporcionar —, sentia que os amigos não lhe gostavam tanto assim, que era muito frágil para estar no meio deles, sentia que não havia motivos para estar entre o que sobrara de sua família — instruindo Fanny a cuidar de sua irmã, deixou tudo em ordem para que ela tivesse uma longa e bonita vida —, sentia que o túmulo lhe seria morada adequada, que o esquife lhe seria macio, que seus desejos seriam abrigados pela terra.
Emily Brontë era uma observadora — Keats também. Mas, mais do que isso, ele era alguém que esperava — ele passou anos de sua vida esperando pela morte chegar. A morte, velha amiga, passava na frente de sua porta, às vezes fazia visita, mas nunca adentrava de fato. Por vezes, quando estava doente em Roma, Severn contou que Keats acordava e começava a chorar ao perceber que havia acordado, que seguia acordado, que seguia com a capacidade de acordar — chorava por ainda não ter morrido. Certamente, isso ocorreu pelo sofrimento físico pelo qual ele estava passando, afinal, a tuberculose havia lhe consumido o corpo; mas também acontecia pelo sofrimento psíquico de ser uma pessoa — e uma pessoa ciente de que a morte está vindo, de que a vida terminou. Keats dizia estar vivendo uma existência póstuma — e estava. Sua vida era aguardar pela visita da velha amiga.
Ao olharmos para a poesia de Keats, encontramos muito dessa melancolia da espera. Mas isto não é tudo: ele era alguém divertido, que fazia brincadeiras com rimas e vivia apaixonadamente. E há quem esqueça que viver é condição para morrer. Keats sabia disso — e, sabedor disso, aproveitava cada instante, sempre sabendo que logo ela viria, e ele teria seu descanso. Caso não o tivesse, ao menos dele restariam alguns versos, que ele acreditava não serem lembrados por ninguém — felizmente, nisso ele errou, pois seguimos amando Keats e entendendo cada vez mais a maneira poética como viveu.
Seus amigos diziam que ele tinha o olhar de uma sacerdotisa de Delfos à procura de visões — e visões de beleza ele tinha, visões que costurava em seus versos. Mas visões são uma parte do Paraíso — e enxergá-lo sem tocá-lo pode ser desgastante. Keats era solitário. Rodeado de pessoas, mas essencialmente solitário. Sua visão poética o afastava ainda mais dos outros, porém, ele só poderia ser quem era.
Por vezes, ele estava rindo e fazendo jogos de palavras para, no minuto seguinte, ir ao canto da sala e ficar à janela, olhando a paisagem lá fora, contemplando a lua, isolado de seus companheiros. É dito que todos respeitavam esse momento como se fosse algo religioso. Keats não era religioso — sua religião era, como ele disse, o Amor e a Beleza. Mas Amor e Beleza são inatingíveis — ao tocá-los, logo eles escapam, esvanecem no ar e reaparecem em outras paragens. A perseguição de Eros é implacável. E a alguém sensível e solitário, contemplar as felicidades do idílio amoroso — ser inspirado por tal, escrever mil versos sobre tal — sem nunca poder de fato vivê-lo é doloroso demais. Keats estava acostumado à morte — a Morte era sua companheira. Por que ela não chegava?
Wordsworth, ao ouvir Keats declamar um poema, disse que se tratava de “um belo exemplo de paganismo”. Ainda que fosse ateu, Keats era pagão — sua divindade estava na Poesia. Ele recitava poemas de olhos fechados, sentindo cada palavra, cada sílaba, navegando pelas ondas das rimas e enxergando um mundo poético que sofria por não poder tocar.
Muitas vezes há dificuldade de entender que o mesmo homem conhecido por cair na gargalhada por qualquer coisa, adorado por seus amigos, sentia-se tão solitário e melancólico. É comum termos em mente a ideia de que uma pessoa deprimida é triste o tempo todo — mas essa ideia não é verdadeira. A tristeza é apenas uma face da depressão — e aqui não me refiro necessariamente à depressão clínica, embora também possa falar dela, mas sim ao estado de espírito que em séculos passados era conhecido como “temperamento melancólico”. Keats era melancólico.
Numa noite, ao chegar em casa após uma visita a Londres, Keats estava com febre e acessos de tosse. Era fevereiro de 1820, e, ao ver uma gota de sangue que saiu em seu lenço ao tossir, ele calmamente disse a Brown, seu amigo: “Esta gota de sangue é a garantia da minha morte. Eu devo morrer”. Ele não disse isso com temor, mas com fascinação — como alguém que finalmente encontra seu destino. E tendo encontrado o destino, tudo se aquietou. Naquele momento, ele sabia que não teria de esperar muito — tudo estaria acabado, seus dias haviam chegado ao fim.
Keats estava convencido de que morreria de forma anônima — ninguém lembraria dele, todos seguiriam sem ele e, aos 25 anos, havia vivido muito pouco para ser lembrado como poeta. Era de uma tristeza infinita para seus amigos saberem como Keats se sentia — tanto que eles passaram suas vidas tentando preservar a memória do poeta.
Mas um poeta não morre — apenas volta ao éter, onde suas palavras ecoam para sempre.
“As melodias são doces, mas aquelas não ouvidas
São mais doces; desta maneira, vós, suaves flautas, soai;
Não ao ouvido sensorial, mas, ternamente,
Toquem as melodias espirituais do não-som.
Belo jovem, sob as árvores, não deixarás
Tua canção, como jamais perderão as árvores suas folhas;
Amante audacioso, nunca, nunca beijarás
Embora perto de tua meta — não te aflijas;
Ela não se desvanecerá, e embora não tenhas o deleite,
Sempre amarás, e será ela sempre bela!”
(John Keats, Ode a um vaso grego)
Textos da semana
A construção do terror em O iluminado (Iokenna)
A escrita de mulheres como um grito na literatura do século XIX em O papel de parede amarelo (Allana)
Obra de arte da semana
A imagem da mulher passou por diversas construções e desconstruções durante a história da humanidade, e muitos destes capítulos da história foram escritos de forma patriarcal e por diversas vezes sexista. Isso inclui as escritas sagradas e o cristianismo.
Maria de Nazaré e Maria Madalena são as mulheres mais conhecidas do catolicismo. Ambas possuem uma legítima importância não apenas na história da humanidade, como também na história da arte. Focando na imagem de Maria Madalena, ela é a mulher com maior presença nas Sagradas Escrituras, mesmo que, ainda assim, sua real participação na história pareça distorcida da realidade. Maria Madalena sempre foi uma figura cativante nos meios religiosos e na atualidade por desempenhar diversos papéis: a prostituta, a mulher arrependida e a santa e a sacerdotisa. Essa imagem híbrida de Maria Madalena teria tido seu início no ano 591 d.C., quando o Papa Gregório I, também conhecido como Magno, durante seu discurso papal, agregou a Maria Madalena duas outras personagens bíblicas; a mulher que segundo o evangelho de Lucas lavou os pés de Cristo com suas lágrimas, os enxugou com seus cabelos e ungiu com perfume, e a segunda seria a mulher indicada no evangelho de João como uma pecadora que foi salva por Cristo de ser morta apedrejada.
Maria Madalena em êxtase é uma pintura a óleo de Artemisia Gentileschi datada de aproximadamente 1620, e atualmente faz parte de uma coleção particular. O estilo barroco é inconfundível e, além disso, a personalidade das pinceladas únicas de Artemisia também está presente. Na pintura, Madalena não é representada como uma penitente, mas sim em estado de êxtase espiritual. Ela está sentada com o corpo inclinado e a cabeça jogada para trás, ombros à mostra e em completa conexão com algo maior, mas também estado de paz — características que fogem da visão patriarcal da sociedade cristã, em especial naquela época. Essa pintura me faz lembrar de outra obra, que também trata da sexualidade e liberdade feminina no contexto cristão: O êxtase de Santa Teresa (1647-1652), de Gian Lorenzo Bernini.
Há algo de muito belo, doce, potente e por vezes violento nas pinturas de Artemisia. E mesmo essa violência não é feita apenas para chocar. Mas quando são obras assim, que transmitem sensações individuais e silenciosas, também nos chocam e nos fazem pensar, não apenas em sua técnica, mas também nos significados que elas transmitem. Ela poderia ter pintado Maria Madalena como era o habitual, uma mulher pecadora e penitente que busca se reintegrar à sociedade que a rejeitou. Mas Artemisia Gentileschi decidiu pintar uma mulher em complexa conexão com o divino, seja no âmbito espiritual quanto no físico.
Por hoje, é isto.
Antes de encerrar, quero das as boas-vindas a quem chegou recentemente — fico muito feliz por ver que há tantas pessoas interessadas nos clássicos. :) Toda semana, escrevo sobre algo que me inspira, sempre entrelançando com clássicos — que são uma parte essencial da minha vida. A edição de hoje é sobre Keats porque foi aniversário dele no dia 31/10, Halloween, e tenho pensado muito sobre ele e sua relação romântica com a morte — e sobre memória, poesia e nos transformarmos em quem somos. Também agradeço aqui a Babi por sua coluna Obra de arte da semana — enquanto historiadora da arte, ela sempre traz novos olhares para pinturas maravilhosas, e amei que ela tenha escolhido falar da Artemisia Gentileschi, uma de minhas artistas favoritas. Artemisia também tinha sua forma de conectar-se ao divino através da arte, e isso é lindíssimo.
Por fim, fica aqui o convite a todos para participarem do Clube do Livro QC — neste mês, estamos lendo Édipo Rei, de Sófocles. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 25/11, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,