#16 - Caminhando em memórias
"i feel i am turning into emily brontë, my lonely life around me like a moor" (anne carson)
Querido leitor,
Semana passada tive de sair de casa — o que é sempre um evento. Tal qual Emily Dickinson, também me comunico majoritariamente à distância, e, se alguém quiser falar comigo, que mande uma mensagem (uma carta, um e-mail). Há exceções, mas me tornei ainda mais reclusa durante a pandemia — e eu já era bastante reclusa antes. Foi Charlotte Brontë quem escreveu, no prefácio da reedição de O Morro dos Ventos Uivantes, após a morte de sua irmã, Emily Brontë, que esta não gostava de sair, afirmando que (em tradução minha)
“as circunstâncias favoreceram e cultivaram sua tendência à reclusão; com exceção de ir à igreja ou caminhar nas colinas, ela raramente cruzava a soleira de casa. Embora seus sentimentos para com as pessoas fossem benevolentes, ela nunca procurou interagir com elas; nem, exceto em poucas ocasiões, o fez.”
O mesmo poderia ser dito ao meu respeito, modificando apenas a questão da igreja. Com raras exceções, só saio para ir caminhar no meio do mato. Então sair, no sentido de interagir com o mundo lá fora para além da natureza, é sempre algo para o qual me preparo com bastante antecedência. E eu tive de sair na semana passada, para fazer uma prova.
Eu sou e sempre fui geograficamente perdida. Não importam quantas instruções me deem, não importa que eu tenha os mapas no celular e impressos, não importa que o próprio Virgílio apareça me guiando — a probabilidade de eu me perder em qualquer lugar é quase 100%. Me perco na faculdade onde estudei durante 5 anos e meio. Me perco no meu próprio bairro, onde moro há quase 20 anos. E, obviamente, me perdi no lugar onde fui na semana passada.
Após muitas correrias por corredores inexplicáveis e lugares que pareciam ter saído de um conto dos irmãos Grimm, cheguei ao local da prova — exatamente na hora em que ela começava. Bem, a prova foi feita e, ao sair de lá, tentando encontrar o caminho de casa, surpreendi-me com outra coisa: o caminho para o passado.
Ao tentar encontrar o caminho de volta para casa, encontrei o caminho da casa de onde morei há 25 anos. Lembrava de que era na região, mas não sabia exatamente onde. Porém ao descer as escadarias que me levariam até onde eu precisava ir, experienciei a mesma sensação que tinha quando era pequena. Foi algo muito estranho, pois a memória, nesse caso, não aconteceu de maneira imagética, mas sim através dos sentidos: meus pés ficavam tropeçando nos degraus da escadaria de pedra. E aquele era um tropeço muito familiar, pois os degraus em questão são largos, e apenas a ponta deles possui uma faixa saliente de pedras, provavelmente no intuito de serem antiderrapantes. Mas ao caminhar ali e sentir meus pés tropeçando nos degraus, lembrei perfeitamente do caminho que percorria na infância, de estar segurando a mão de um dos meus pais enquanto descia aquela escada e quase caía a cada degrau, já que os meus pés, tão pequenos, eram bem menores do que os degraus e simplesmente se chocavam contra a fita de pedra das bordas. 25 anos se passaram e devo dizer que eles não cresceram muito — de 30, agora calço 33/34 —, então não é como se a sensação de caminhar ali fosse diferente.
Foi como lembrar de outra vida. De repente, me vi de volta àquele bairro, na expectativa de para qual escola eu iria, ouvindo as histórias da minha família a respeito dos universitários que circulavam por ali, “todos muito estranhos”, eles diziam. E eu pensando que toda aquela estranheza me era muito familiar. Ao pisar nos degraus de pedra e quase cair, voltei 25 anos no tempo e pude, novamente, me ver subindo a avenida para ir até o local onde vendiam-se as figurinhas para o álbum de Pokémon. Lembrei de estar descendo aquela avenida num dia chuvoso de inverno, e de ouvir meu irmão e minha mãe conversando sobre a escola, sobre o diretor, que morava ali perto, sobre a folha quadriculada que era necessária para um trabalho — folha que eu achava o ápice da adultez, uma folha quadriculada, muito importante, é claro. Lembrei também de algo bom: estar esperando a mãe chegar no fim de tarde, ela descendo as escadas (outras escadas), e eu olhando pela janela para ver se ela trazia em mãos o pacotinho do meu bolo de laranja preferido, algo que ela costumava trazer para mim. Aquelas lembranças têm cheiro de chuva. A terra daquele lugar é escura e fértil, tudo que se planta cresce, e ela faz afundar os pés por qualquer chuvinha. O lugar tem um aspecto desértico e estranho, ainda que seja muito populoso. E tudo é cercado de uma monotonia urbana e uma melancolia que me escapava na infância, embora, olhando em retrospecto, ela claramente estivesse lá.
No caminho para casa, fiquei pensando em O homem da areia, novela de E.T.A. Hoffmann que trabalha a questão do inconsciente e como este pode nos levar de volta à infância através de uma simples lembrança, um nome, um rosto semelhante àquele que vimos outrora. Eu certamente não tive a experiência macabra de Nathaniel quando caminhei pela escada de pedra, mas pude retornar à minha infância tão facilmente quanto ele. E penso em como somos sempre os mesmos, apenas nos fragmentamos pelo caminho, assumindo novas identidades — mas basta um simples olhar para lá no fundo retornarmos a quem sempre fomos, ainda que, a princípio, não tenhamos plena consciência disso.
“i feel i am turning into emily brontë,
my lonely life around me like a moor”
— Anne Carson
Textos da semana
A arte de sonhar em Terra Sonâmbula (Bárbara Chaves)
De Ariana para Dionísio: Hilda Hilst, mito e poesia em uma metafísica do desejo (Isabella Vaz)
A solidão feminina em A assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson (Elisa Silveira)
Os Adormecidos, de Walt Whitman: um manifesto de solidão, sexualidade e humanidade (Analu Flores)
Matilda de Inglaterra: a rainha sem trono (Bianca Smiderle)
Obra de arte da semana
Tenho tido dificuldade para ler ultimamente, e provavelmente as dezenas de livros que comecei durante esse período vão ficar parados me julgando por muito tempo. Isso sempre acontece comigo de tempos em tempos, e pode se estender por meses, mas existe algo que de alguma forma consegue furar esse bloqueio: ler contos curtos.
A sensação de conseguir finalizar uma leitura em menos de uma hora é acolhedora, principalmente para uma pessoa que tem problemas de conclusão como eu. Para tentar quebrar o bloqueio dessa vez, decidi aceitar a indicação da Mia e ler o conto de E. T. A. Hoffmann, O homem da areia, publicado em 1817. Na metade do conto, comecei a pensar em uma pintura que muito se assemelha com uma personagem da história de Hoffmann, Olympia, de Édouard Manet.
No conto também há uma personagem chamada Olympia, e a semelhança com a pintura de Manet fica ainda mais evidente no decorrer da trama. A Olympia de Hoffmann é um autômato — isto é, uma criação mecânica com capacidade animada que a faz parecer viva. Todos ao redor do personagem central, Nathaniel, sentem uma perturbação quando estão perto de Olympia, como se estivesse algo faltando naquela mulher e ela nem parecesse viva; um deles diz: “Achamos que esta Olímpia tem qualquer coisa de sinistro e nós queremos ficar longe dela, pois temos a impressão de que apenas finge ser criatura viva e há algum lamentável equívoco nessa história toda”.
Mas Nathaniel, completamente apaixonado e beirando a insanidade, se recusa a acreditar que há algo de errado com sua noiva. Ele não nota que Olympia não respira, mal fala uma frase inteira e se movimenta de forma mecânica e calculada. Nathaniel a considera perfeita, uma mulher ideal, que nunca vai retrucar ou dar sua opinião, que vai aceitar todos os atos praticados e dirigidos a ela, uma boneca perfeita sem vontade própria.
A Olympia de Manet também parece uma boneca e sua pele pálida faz parecer que ela nem mesmo está viva. A obra de 1863 atualmente se encontra no Museu d'Orsay em Paris. O nome “Olympia” era associado à prostituição nas décadas de 1860 em Paris. Além disso, o fato de estar nua, a flor no cabelo e as joias corroboram com essa ideia.
Os Contos de Hoffmann, de 1951, dirigido por Michael Powell e Emeric Pressburger, é uma adaptação para o cinema da ópera Les contes d'Hoffmann, de Jules Barbier e Michel Carrè, que estreou no teatro Odéon de Paris em 1851. Dentre os contos retratados, O homem da areia é um deles.
Muito se fala na inspiração de Manet na Vênus de Urbino, de Ticiano, e na Maja nua, de Goya, mas é possível também que Manet tenha tido acesso à ópera, e, anos depois, se inspirado nos contos de Hoffmann para compôr sua Olympia.
A Olympia de Manet parece não pertencer a este mundo, seu olhar fixo no espectador também não possui vida; assim como no conto de Hoffmann, os olhos são tão importantes que, a partir do momento em que lhe são roubados, a Olympia perde o pouco de vida que existia em seu corpo mecânico e seu rosto de porcelana se quebra. Há algo de perturbador na perfeição da Olympia de Manet também, como dito acima: “Achamos que esta Olímpia tem qualquer coisa de sinistro”. A técnica que Manet utilizou, sem sombreamento, faz com que Olympia pareça ainda mais artificial. Uma boneca com pele que mescla porcelana e pele de uma morta. O desejo em violar um corpo morto, sem vontades e, na mentalidade de muitos, sem direitos, corrobora com a ideia de possuir a perfeição eternizada da morte que desumaniza o corpo, e, em consequência, a mulher representada. Em um artigo no site, Mia escreveu mais sobre isso, caso queiram ler.
Por hoje, é isto.
Além disso, leremos O papel de parede amarelo e outras histórias, de Charlotte Perkins Gilman, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 30/09, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
Nossa, que texto gostoso. Primeiro, que também sou uma eremita que mal sai da concha, e quando sai sempre leva um pouquinho de ansiedade na bolsa (quando começo a viagem — porque para qualquer bairro que eu vá é uma viagem —, passa). Depois, que temos quase o mesmo tamanho de pé: calço 34/35 hahaha. Depois, ainda, sobre a evocação de memórias... Hoje eu estava lutando com a tristeza no meio da tarde, e certamente o que me ajudou a dar aquele click mental e melhorar foi passar um gloss clássico da avon, de tutti-frutti, que tem o cheiro da viagem que fiz ao sítio do meu avô, e é minha única lembrança dele vivo. Curiosamente, hoje são 16 anos sem meu outro avô. Sei lá, esse cheiro me fez lembrar (inconscientemente até agora) que tenho raízes e não vou cair murcha por aí, como uma planta que não pegou. Não pelo fato de possuir uma família, mas pelo fato de possuir uma memória. Desejo boa sorte com o resultado da prova, amo esta tela do Caspar e me admirei com a de Manet. ♥
Só consegui pensar: que pés pequenos. :)
E adorei rever E. T. A. Hoffmann, um dos meus autores favoritos de todos os tempos, mas que há tempos eu não retorno nele.