#28 - Canções de alaúde
"give me books, french wine, fruit, fine weather and a little music played out of doors by somebody I do not know." (john keats)
Querido leitor,
Hoje faz 471 anos da morte de Edward VI em 1553. O fato, que comoveu todo um país, deixando em alerta a Europa inteira do século XVI, e causou muitas reviravoltas na coroa inglesa e na vida das pessoas comuns, nos passa despercebido. Nós, pessoas do século XXI, não nos importamos com o único filho de Henrique VIII ou com sua morte precoce aos 15 anos. Ao lembrarmos da Era Tudor, pensamos na própria figura de Henrique VIII, esse rei imponente que assassinou esposas; pensamos em Ana Bolena, a mulher com quem ele casou pela segunda vez e cuja cabeça decepou; pensamos em sua filha, Elizabeth I, e na Era de Ouro da Inglaterra com suas grandes navegações, pirataria, colonização e bonitos vestidos. Mas frequentemente esquecemos do menino franzino e doente que foi rei após o sanguinolento pai, de sua prima, Lady Jane Grey, rainha da Inglaterra e da Irlanda por 9 dias, antes de ser deposta pela filha mais velha do temível Henrique VIII, Mary Tudor, a Bloody Mary, a rainha católica que assassinou a tantos em nome da religião e que reinou por apenas 3 anos, tendo sido sucedida por sua irmã Elizabeth.
Os Tudors são um ponto de fascinação na minha vida há anos — de início, por causa da Ana Bolena, uma das mulheres mais fascinantes da história, mas depois por tudo: a vida na Inglaterra Tudor era complicada e não havia maneira de saber se se iria conseguir sobreviver até o final da semana ou se os humores do rei te fariam perder a cabeça. Ainda assim, por mais terrível que fosse, aquele período cimentou muitos pontos-chave para a sociedade que temos hoje, e embora o conhecimento de toda a história seja importante, com frequência me volto para aqueles anos Tudors na tentativa de entender como chegamos aqui.
Lembro disso hoje porque essa semana comecei uma disciplina sobre Shakespeare, que escreveu suas peças durante o reinado de Elizabeth I e, ao final da vida, ainda era ativo durante os primeiros anos de James I no poder. Ontem, influenciada pela disciplina, assisti ao filme Lady Jane, que conta a história da jovem rainha prima de Edward VI que durou apenas 9 dias no poder. O filme é interessante, embora não tenha se destacado para mim com exceção do figurino e da atuação de Cary Elwes como Guilford Dudley. Mas o que me chamou atenção foi que, ao pesquisar um pouco mais sobre Lady Jane após assistir o filme, lembrei que amanhã, no caso hoje, seria o aniversário de morte de Edward VI. Não foi planejado, mas gosto de quando essas coincidências acontecem — me lembram de que todos os dias têm história e memória e de que somos testemunhas fugidias do tempo.
Escrevo isto ouvindo uma versão de Sting de uma música renascentista, escrita por um contemporâneo de Shakespeare, John Dowland. A música, uma balada renascentista, se chama Can she excuse my wrongs?, e é belíssima — gostei especialmente da interpretação de Sting para ela, algo que ainda não conhecia, mas que acredito ter casado perfeitamente bem.
John Dowland nasceu em 1563 (Shakespeare nasceu um ano depois, em 1564) e morreu em 1626. Acho engraçado que dele é dito que escolheu a melancolia como sua persona. Um pré-romântico, o menino John. Suas músicas eram conhecidas por ser belas e tristes. Se lembrarmos que ele chegou a dividir seu tempo de vida com o Maneirismo, isso tem um sentido completamente diferente e interessante.
Dowland foi alaudista oficial na corte do rei James I, o filho da Mary Stuart, rainha escocesa presa e executada por Elizabeth I, sua prima. Há muitas coisas que acho engraçadas nessa história toda, especialmente a presença dos acasos num mundo caótico de intrigas familiares e como a arte nos revela a corda-bamba em que todos caminhavam. Mas, para além disso, me divirto muito falando sobre música renascentista. Quando me perguntam o que ouço, digo que o meu gosto varia de música clássica a rock dos anos 70 — alguma coisa contemporânea também entra na roda, mas eu simplesmente amo os anos 70 —, e geralmente recebo algum comentário dizendo que gosto de música velha. Acho isso hilário porque não acredito que exista música velha — música é música, e a arte, para mim, habita um outro tempo, um não-tempo, um limiar entre a vida e a morte: a eternidade. Mas a respeito do Dowland, acho engraçado lembrar desses comentários que ouço porque acreditamos, em geral, uma crença talvez surgida da falta de ensino musical na educação atual ou talvez porque a vida é tão corrida que não temos tempo para parar e pesquisar o início das coisas, que a música com letras, cantada, música para além da melodia é algo moderno, quando, na verdade, a própria poesia é música — os gregos que o digam. E voltando ao Dowland, ele é considerado um dos primeiros compositores modernos, que compunha não apenas a parte instrumental como também letras, sacras ou não. Antes dos lançamentos de álbums no Spotify, houve John Dowland publicando seu Primeiro Livro de Canções em 1597, com 21 músicas para vozes e alaúde. Imagina compor músicas as quais são faladas 427 anos após seu lançamento — que incrível.
O arranjo dessa versão é uma parceria entre Sting e Edin Karamazov, um músico bósnio que, dentre suas habilidades, toca o alaúde, instrumento antiquíssimo cujas origens remontam ao nosso passado mais longínquo. Não é à toa que o vejamos representado em muitas pinturas ao longo da história — especialmente no Renascimento, quando era presença constante na corte e em festas.
É interessante pensar que o alaúde medieval, uma de suas formas mais presentes na iconografia do instrumento, que nos parece tão antiquado hoje em dia, é, na verdade, o alaúde moderno. O tempo me fascina. Pensar que em tão pouco tempo — um milênio não é nada, nós é que vivemos pouco — a música mudou não apenas de maneira estilística como também física, pois os instrumentos tiveram grandes mudanças estruturais, é algo incrível. Penso frequentemente em música porque minha infância e adolescência foram completamente modificadas pela presença da música na minha vida. Estudei canto e piano durante esses primeiros anos da minha vida e, embora tenha deixado para lá os dias de apresentações, jamais abandonei esse amor, que me comove às lágrimas.
Mais ainda: ouvir uma música renascentista (ou de qualquer outra época tão distante para nós) me comove, pois me é impossível ouvir tais canções sem imaginar um salão cheio de pessoas de outras épocas se emocionando com aquela melodia, aquela letra, pensando que aquilo fala sobre suas vidas, que só elas entendem o significado oculto por trás da bela canção entoada e que ninguém jamais compreenderá o que é ter uma vida interior tão rica e complexa e cheia de sentimentos. Isso me faz sorrir, pois as formas de fazer música podem ter mudado, mas somos os mesmos seja num salão renascentista ou num estádio ouvindo um show com milhares de pessoas ao redor. Nos achamos tão únicos, mas todos partilhamos as mesmas emoções, alegrias e dores — e as partilhamos contemplando arte, que está presente em cada passo da humanidade.
Queridos, tenho alguns anúncios para fazer:
Como vocês sabem, as enchentes no RS foram uma tragédia terrível — mas, embora tenham passado, ainda estamos vivendo os resquícios delas. Eu mesma estou em processos de reforma aqui em casa, por isso, ando mais sumida e muita coisa do QC ficou em segundo plano. Estou retomando tudo aos poucos, mas já aceitei que o ritmo agora é outro. Porém, nisso de voltar aos pouquinhos, o Clube do Livro QC já voltou. Tivemos o nosso encontro sobre Antígona na semana passada e foi maravilhoso. O próximo será sobre O Morro dos Ventos Uivantes, livro de Emily Brontë que pesquiso no mestrado, e estou animada demais para conversar sobre ele com vocês. O encontro será no dia 27/07, às 16h, por videochamada — cujo link será enviado no grupo do telegram.
Como vocês sabem, eu cuido do QC sozinha — há uma equipe de redatoras do site, mas sou eu quem edito e reviso os textos, faço as artes, cuido das redes etc. Isso tem sido desafiador especialmente agora, com tudo o que aconteceu desde o início das enchentes. O Querido Clássico é e vai continuar a ser um projeto cultural voluntário e gratuito feito por mim e por uma equipe incrível de mulheres pesquisadoras, mas há muitas coisas que queremos fazer que envolvem despesas, inclusive manter o site. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos — confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥
Dentre as recompensas, está o Clube do Conto: é semelhante ao Clube do Livro QC, mas de contos, pois adoro contos e sinto que poucas vezes temos a oportunidade de nos aprofundarmos neles. Assim, mensalmente debatemos a fundo um conto escolhido por mim. Como em maio e junho não tivemos encontro, pois enchentes, teremos 2 encontros em julho e 2 em agosto. Os contos a serem lidos e debatidos serão os seguintes:
14/07 - Festa no jardim (Katherine Mansfield)
28/07 - Olalla (Robert Louis Stevenson)
11/08 - A Vênus de Ille (Prosper Mérimée)
25/08 - Sir Edmund Orme (Henry James)
Os links dos encontros serão enviados para os apoiadores do Catarse do QC como recompensa — dentre outras coisas, como um guia de leitura da obra do mês etc. Espero encontrá-los lá. :)
Por hoje, é isto.
Abraços e bebam água (mesmo nesse frio!),
Mia
Que frase maravilhosa essa do Keats! <3
quanta informação e conhecimento numa newsletter, só!! adorei, mia!!