Querido leitor,
Sonhei com a vida que eu escolhi não ter.
É estranho pensar que eu poderia ser uma pessoa completamente diferente - passar meus dias de outra maneira, ter responsabilidades e preocupações quase opostas às que tenho hoje. É estranho pensar que estive no limiar de ser essa pessoa. Não fosse por uma decisão — uma única decisão —, talvez hoje eu não estivesse aqui.
E não é tudo na vida assim?
Fico me perguntando até que ponto somos quem somos ou somos o que fazemos. Será que as coisas que escolhemos - seguir por um caminho ao invés de outro, fazer tal faculdade, trabalhar em tal área e não outra - são assim tão fundamentais em nosso caráter, ou simplesmente seríamos pessoas vivendo com uma perpétua energia nervosa se remexendo lá dentro caso tivéssemos tomado um caminho que não era o nosso?
Ao viver no sonho a vida alternativa que me foi preparada desde o nascimento, percebi algo que já tinha como certeza não verbalizada: eu poderia ter encontrado felicidade lá também. Mas estaria perpetuamente inquieta. E essa inquietação provavelmente um dia estouraria em alguma decisão — não sei se eu me tornaria quem eu sou ou se acabaria tomando o caminho que tomei. “Todos os caminhos levam a Roma” — será mesmo? Mas tive a sensação palpável de que aquela inquietação sem nome não me deixaria enquanto eu não fizesse algo drástico que modificasse os meus dias — ou me levaria a percorrer muitos caminhos, todos interessantes, mas que me deixariam ainda mais inquieta.
Durante o sábado retomei as minhas pesquisas sobre as irmãs Brontës — minhas eternas pesquisas sobre a família mais talentosa da literatura. As Brontës me acompanham há anos, sendo meu objeto de pesquisa e uma paixão pessoal. Sou fascinada por suas obras e pela forma como conseguiram superar tantas barreiras e tornarem-se o que hoje são, redefinindo um gênero.
Embora Charlotte Brontë tenha deixado muitos registros, de suas irmãs não se sabe tanto - menos ainda de Emily Brontë, a mais reclusa delas. Emily não era alguém que realmente se colocava no mundo — ela tinha seu próprio mundo e fazia questão de vivê-lo da maneira que lhe fizesse sentido. Nunca casou, não se sabe de nenhum pretendente que tenha tido - diferentemente de suas irmãs, que tiveram seus envolvimentos emocionais com rapazes — e vivia sua rotina de uma maneira inquieta.
É essa inquietação que me fascina. É claro que sem uma viagem no tempo não há como saber ao certo todos os pormenores, já que Emily não deixou muitos registros pessoais — mas há uma inquietação em tudo o que fazia. Seus poemas, seu romance, os ensaios que escreveu — mesmo as descrições que família e amigos faziam dela, tudo nos mostra uma Emily permanentemente inquieta, ainda que curiosamente imóvel, evitando o olhar das pessoas e se cercando de natureza, literatura e música.
Emily viveu sua vida, mas tenho a impressão de que ela sentia que poderia viver outra — uma na qual não cabia, uma que lhe chamava e a cujo chamado ela não sabia como responder.
Filha de um pároco, criada numa família religiosa, Emily foi cercada disso desde que nasceu. Nos livros de suas irmãs, essa criação cristã se faz presente - especialmente nos sermões encontrados em Agnes Grey, de Anne Brontë. Mas O Morro dos Ventos Uivantes, filho único de Emily, se destaca também por não seguir uma linha cristã de pensamento. Embora a religiosidade cristã lá apareça, ela não é mais do que uma obrigatoriedade incomodativa ou uma forma de dissimulação. O cerne do romance se encontra na impetuosidade da natureza — e em como o ser humano é parte desta mesma natureza, embora use um véu de controle.
Em um ensaio chamado A borboleta, Emily escreveu:
“Em um desses estados de espírito em que todo mundo se encontra às vezes, quando o mundo imaginário sofre de um inverno que mirra sua vegetação; quando a luz da vida parece extinguir-se e a existência transforma-se num deserto estéril onde vagamos, expostos a todas as tempestades que explodem sob o céu, sem esperança de encontrar descanso ou abrigo — num desses ânimos sombrios, estava eu caminhando, durante uma tarde, no limite de uma floresta. Era verão; o sol ainda brilhava alto no oeste e o ar ressoava com o canto dos pássaros. Tudo parecia feliz, mas, para mim, isso era apenas aparência. Sentei ao pé de um antigo carvalho, entre cujos ramos o pintassilgo havia acabado de iniciar suas vésperas. ‘Pobre idiota’, eu disse a mim mesma, ‘é para guiar a bala até seu peito ou para guiar a criança até sua ninhada que você canta tão alto e claro? Silencia essa melodia prematura, empoleire-se no seu ninho; amanhã, quem sabe, ele estará vazio.’ Mas por que me dirigir apenas a você? Toda a criação é igualmente louca. Contemple essas moscas brincando acima do riacho; as andorinhas e os peixes diminuem seu número a cada minuto. Eles, por outro lado, se tornarão, a seu tempo, a presa de algum tirano do ar ou da água; e o homem, seja por diversão ou necessidade, matará os assassinos deles. A natureza é um quebra-cabeça inexplicável; ela existe num princípio de destruição. Todo ser vivo deve ser o incansável instrumento de morte para outros, ou ele mesmo deverá deixar de existir.”
Quando O Morro dos Ventos Uivantes foi publicado, a crítica tremeu perante aquele livro perturbador - mas assumiu que era uma obra a ser lida e analisada sob vários vieses. Porém, quando Emily morreu e Charlotte revelou a autoria dos romances das irmãs — que publicaram sob pseudônimos masculinos —, a crítica logo mudou o tom e questionou se seria possível que uma mulher tivesse escrito algo assim. Alguns, tentando explicar como Emily poderia ter escrito seu livro, disseram que agora haviam entendido tratar-se de uma história de amor — uma das coisas nas quais Emily estava menos interessada. Mas, é claro, uma mulher só poderia falar de amor, não é mesmo?
Ao ler seus ensaios, não restam dúvidas de que Emily é a autora de O Morro dos Ventos Uivantes. Também podemos reparar como eles nos mostram uma Emily mais próxima a Heathcliff, personagem de seu livro, do que poderíamos imaginar a princípio. Essa inquietação que sentia — inquietação que a fez seguir por caminhos não tão percorridos por mulheres em sua época — a fazia questionar tudo, inclusive a natureza, a violência natural e o papel do ser humano nisso. A natureza, para Emily, existia num princípio de destruição — e como existir numa vida regrada, de acordo com as regras cristãs nas quais fora criada, sabendo que ela também, como parte da natureza, tinha esse princípio caótico dentro de si?
A vida não exibia muitas possibilidades para mulheres na época — ainda assim, Emily foi poeta, romancista, a pessoa responsável pelas finanças da casa, também responsável pela segurança da propriedade (era ela quem sabia atirar naquela família e que estava sempre preparada caso algum invasor chegasse perto da casa da família Brontë), famosamente conhecida por familiares e amigos como a melhor cozinheira que existia (especialmente por seu pão, que foi citado muitas vezes por muitas pessoas), e, assim como muitos dos grandes compositores, era virtuosa no piano… Emily viveu intensamente suas paixões e acumulou muitos papéis ao longo da vida — mas sua inquietação interna persistia, e persistiu até sua morte, infelizmente precoce, nos restando apenas sua obra e a memória daqueles que a conheceram, que atestaram o quão cheia de energia e vontades ela era. Sobre ela, Constantin Heger disse:
“Ela deveria ter sido um homem — um grande navegador. Seu poderoso intelecto teria deduzido novas esferas de descobertas advindas do conhecimento dos antigos; e sua vontade forte e imperiosa nunca teria se assustado por oposições ou dificuldades; nunca desistindo senão com a vida.”
Acredito que Emily fez o melhor que pôde num tempo em que não tinha muitas oportunidades para ser tudo aquilo que sua alma desejava. Mas também acredito que sua inquietação está presente em tudo o que escreveu — e isso, talvez, seja o motivo de ela nos fascinar tanto ainda hoje.
Textos da semana
Ecologia e anticolonialismo em Floresta é o nome do mundo, de Ursula K. Le Guin (Bárbara Chaves)
Fruto do Paraíso: a reconstrução de Eva por Věra Chytilová (Carolina Pereira)
Os deuses de Antígona (Mia Sodré)
A alegoria dos pássaros como liberdade no século XIX (Ana Clara de Menezes)
Vislumbres literários sob crítica assexual (Stéfffani Cruz)
Obra de arte da semana
Recentemente uma corrente no Twitter chamou minha atenção. Ela era: “Qual pintura fala com a sua alma?”.
Eu não precisei pensar muito para escolher Stitching the standard, de Edmund Blair Leighton (1911). A arte sempre falou com a minha alma — se não fosse uma das coisas mais importantes para mim, eu não teria decidido estudar História da Arte. Mas há algo nesta pintura em específico que mexe muito comigo.
O britânico Edmund Blair Leighton fazia parte da Irmandade Pré-Rafaelita, e pintou quadros famosos, como o The Accolade, datado de 1901. Em Stitching the standard (algo como “Costurando o estandarte”), uma mulher está sentada no alto de um castelo medieval, costurando um estandarte.
Não se sabe o nome dessa mulher, nem o que a levou a bordar à luz do dia, longe de todos. Mas uma coisa é muito evidente: a calma e tranquilidade com que ela se concentra no trabalho de bordar. E é justamente isso que a pintura me transmite, tranquilidade. É quase como se automaticamente, ao olhar para ela, eu sentisse uma paz interior que realmente conversa com a minha alma, pois, como também sou bordadeira, entendo a sensação de encontrar um lugar calmo em que posso focar apenas nos pontos feitos de linhas, que formam figuras no tecido. Sou uma pessoa inquieta, assim como a personagem principal do livro de Paulo Coelho, A bruxa de Portobello:
“Vocês disseram mais de uma vez que sou uma pessoa inquieta por natureza. Mas não escolhi esta maneira de viver: gostaria de poder estar aqui, tranquila, também assistindo televisão. É impossível: minha cabeça não pára. Às vezes penso que vou enlouquecer, preciso estar sempre dançando, escrevendo, vendendo terrenos , cuidando de Viorel, lendo qualquer coisa que me cai adiante. Acham normal?”
Assim como Athena, preciso estar sempre em movimento, e também como ela:
"Quando fico quieta, ou quando estou muitíssimo agitada, sinto que estou vibrando junto com o universo inteiro. E passo a conhecer coisas que não conheço — como se fosse o próprio Deus que estivesse guiando meus passos. Há minutos em que sinto que tudo me está sendo revelado."
Stitching the standard é uma das raras coisas que me faz “pausar”, assim como bordar. Observar a pintura sempre me faz parar, porque me sinto em sincronia com a mulher bordando na tela, e nem que seja por alguns minutos, sua paz me invade e consigo me imaginar no alto de um castelo medieval em um período entreguerras.
Saindo com um pouquinho de atraso, a edição da semana (passada) terminou de ser escrita agorinha, no horário de almoço da segunda-feira. Há dias que são tumultuados — mas encontrar nossos espaços no meio do caos é essencial.
Por hoje, é isto.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
"as irmãs brontë me acompanham há anos" por aqui também é assim. sou apaixonada pela história delas, uma das minhas favoritas da literatura. <3