#5 - A beleza no estranho e a semana
Querido leitor,
Antes de mais nada, não se assuste: o layout mudou porque a plataforma mudou. Migrei a newsletter do Mailchimp para o Substack porque o número de inscritos aumentou muito (o que me deixa bem felizinha). Infelizmente, o Mailchimp tem um limite bem pequeno de inscritos antes de começar a cobrar bastante para permitir que mais pessoas possam ler a newsletter e eu consiga escrever e enviar os -emails normalmente.
Bem, é a vida.
Como cantou Joni Mitchell:
Well, something is lost, but something’s gained, in living every day.
Perdemos no quesito “layout bonito”, mas ganhamos em “plataforma gratuita” e “existe um aplicativo do Substack que permite ler todas as newsletters que você assina num só lugar, tudo organizadinho”. Então, segue o baile.
Comecei a ler Silvina Ocampo esta semana, num dia em que conversara sobre a infância - particularmente, a respeito de como fui uma criança esquisita. Lembro de ser bem pequeninha, lá pelos 2 anos, e sair para o pátio de manhã bem cedinho, abraçar uma das árvores do jardim, olhar para o céu e ficar lá, pensando em todos os anjos e fadas e gnomos e criaturas da natureza que estavam ali comigo, naquele silêncio. Passei a infância bem solitária - meus irmãos já eram todos adolescentes e não havia crianças por perto. Mas não estava sozinha - eu conversava o tempo todo com os animais que surgiam por lá. Acreditava piamente que as lesmas eram minhas amigas e vinham todo dia para me fazer companhia. Assistia a desenhos na televisão com uma ou duas borboletas por perto, voando ao redor ou simplesmente paradinhas, pousadas ao meu lado ou no meu braço. Todas as manhãs, esperava o pássaro azulão, que levava no bico algumas sementes de erva-doce e as deixava na minha janela. Ele era meu amigo. A infância foi um período mágico - estranho para quem via de fora, mas perfeitamente normal para mim, que o estava vivendo. A descoberta do mundo era poética. Ainda é, na verdade. Olhar para a natureza é contemplar a perfeição. Eu sabia disso, mesmo que intuitivamente, aos 2 anos, e sei disso agora. Mas todo mundo achava esquisito.
A conversa sobre a infância foi uma extensão da que aconteceu durante o encontro do Clube do Livro QC para falarmos de Sempre vivemos no castelo, da Shirley Jackson. Foram 3h de encontro online, e em determinado momento me vi trocando opiniões acerca de vidas passadas, regressão, e a infância. Foi algo tão bom - embora bem fora da curva para o clube - que saí do encontro mais leve. Isso porque quando a gente compartilha as nossas questões - mesmo, ou especialmente, as mais estranhas dentre elas - é possível encontrar pessoas alinhadas àquilo pelo qual passamos ou sentimos. E isso pode ser catártico. Pode ser aconchegante.
Depois da conversa, fui ler As convidadas, da Silvina Ocampo. Nunca havia lido nada dela, e me surpreendi com seus contos. Os primeiros são sobre crianças particularmente esquisitas - não há nada objetivamente errado com elas, mas existem traços, detalhes sutis, que nos levam a sentir uma aura de estranheza permeando todos os seus atos (embora seria possível dizer que tal estranheza é mais alinhada a algo perturbador do que a qualquer outra coisa). Ainda não terminei o livro, mas até onde o li foi ótimo me sentir abraçada pela atmosfera do realismo mágico da América Latina.
Existe algo muito nosso nessa realidade esquisita. Um cachorro gigantesco espreita pela casa, uma menina de cabelos verdes e pele translúcida nasce numa família, espíritos se comunicam livremente com as mulheres de três gerações - e nada disso é visto com uma estranheza suspeita, mas sim como algo esquisito, porém parte do dia a dia. É diferente, mas existe, e não há nada de tão absurdo nisso.
Desde que descobri o realismo mágico, lá por 2014, me encanta como ele se encaixa no cotidiano da minha família e de tantas pessoas que conheço. Aqui também se avistam espíritos, e nenhum alarde é feito por causa disso. Os olhos da minha mãe mudaram de cor. Há dois anos, um pato escala a árvore da vizinha, se esgueira pelo telhado e, toda madrugada, vem aqui na minha janela, fazer quá-quá e bater para entrar. São acontecimentos esquisitos, mas tão naturais quanto deixar a massa do pão descansar para crescer. É a magia do dia a dia.
Existe beleza em aceitar a normalidade do estranho. É nesse olhar poético do mundo que encontramos as coisas mais belas.
Textos da semana
Nesta semana, abrimos as celebrações do Natal do QC. Dá uma olhada no que publicamos:
A recriação de mitos em Lore Olympus (Babi Moerbeck)
Little Women: a luta de uma “mulherzinha” no mundo dos homens (Natália Meisen)
Amor mais que maiúsculo: as cartas de Ana Cristina Cesar (Mia Sodré)
O Natal dos fantasmas: por que essa data combina tanto com o terror? (Pietra Vaz)
O Livro dos Anseios e as mulheres apagadas pela história (Babi Moerbeck)
Obra de arte da semana
Gosto de brincar que sou perseguida pela deusa Vênus desde o primeiro semestre na faculdade. Estava no meio de uma aula sobre iconografia do terror e me foi apresentada uma pesquisa que muito me interessa, a monstruosidade feminina. A professora usou como exemplo um desenho de Francisco de Holanda representando Afrodite de uma forma que nunca havia visto antes, que era o extremo oposto da imagem de deusa da beleza, fertilidade e sexualidade que a mitologia e as artes num geral apresentam ao público. Mas a verdade é que no meio de minha obsessão (não tão momentânea) pela mitologia de Vênus, me descobri fascinada por suas representações e também por quão complexa é sua história, inclusive na arte.
A versão mais famosa do seu nascimento é contada por Hesíodo. A história é que ela nasceu quando Cronos cortou os órgãos genitais de Urano e arremessou-os ao mar; da espuma (aphros) surgida ergueu-se Vênus. E a partir desse mito temos as representações mais famosas da deusa, conhecida como Venus Anadyomene, e a minha preferida, desde a primeira vez que a vi, é a pintura representando o nascimento de Vênus, criada por Adolf Hiremy-Hirschl.
Adolf Hiremy-Hirschl (1860-1933) foi um artista húngaro, conhecido pela pintura histórica e mitológica, particularmente de assuntos relacionados a Roma antiga. Algumas de suas principais pinturas históricas foram perdidas, e muitas de suas obras menores foram retidas por seus herdeiros até o início da década de 1980. O nascimento de Vênus na visão de Hiremy-Hirschl expõe a beleza da deusa como elemento único na pintura, sem a interferência de outros pontos para capturar a atenção. A Vênus é retratada aparecendo das águas esverdeadas do mar, envolta na espuma, parecendo sonolenta. O mar agitado cobre quase toda a cena, dando ainda mais protagonismo a ela. A obra representa de maneira magnífica o tão famoso mito de nascimento da deusa que, segundo a história, nasceu das espumas do mar, após o titã Cronos castrar Urano e jogar seus órgãos genitais nas águas, nascendo, assim, a deusa, filha de Urano e do mar.
Por hoje é isto.
Se cuidem, bebam água e descansem que amanhã é uma nova semana.
Abraço,