Querido leitor,
Duas coisas me foram perguntadas na semana passada: quais são as minhas inspirações para a eterna pesquisa de artista e qual é o meu processo criativo. A primeira foi no curso Como criar capas, ministrado pela Giovanna Cianelli na Seiva, uma editora-escola de criatividade. A outra, num comentário que recebi no post que fiz em celebração ao aniversário de 1 ano da publicação do meu primeiro livro, Oráculo. Eu não deveria me surpreender com a coincidência das duas perguntas se complementarem tanto e terem sido feitas na mesma semana, afinal de contas, estou no meio artístico e isso faz parte de ser artista — mas escolho ver a vida com lentes mágicas e achei a coincidência bonita e inspiradora.
Falar de referências e de processo criativo é algo muito pessoal — há várias pessoas que amam os mesmos estilos, bandas, filmes, livros, mas, ainda assim, são atravessadas por essas coisas de maneiras completamente únicas, pois toda a experiência é subjetiva. Acredito que é importante sempre lembrar disso: toda a experiência é subjetiva. E a arte nos permite adentrar um pouco esse universo da subjetividade, pois o artista traduz o inefável, colocando em palavras (ou em sons, imagens etc.) o que sente no espírito.
Milan Kundera escreveu em A insustentável leveza do ser que cada pessoa tem uma partitura em sua vida e os temas musicais vão sendo compostos durante seus anos de juventude — depois disso, o que temos são variações do tema, e por isso pode ser difícil ter novos relacionamentos aprofundados após certa idade, dado que nossas partituras já estão prontas, nossos temas, explorados e trabalhados, e temos uma sinfonia que, muitas vezes, não combina em nada com a melodia de outra pessoa. Kundera, além de escritor, era formado em música, e isso transparece de maneiras muito bonitas em seus livros, que sempre têm algo musical em suas páginas. Podemos dizer, olhando para sua obra e sabendo um pouco de sua vida, que um dos grandes temas de Kundera, uma das coisas que lhe atravessavam, era a música — e embora ele não tenha vivido como um musicista, ainda assim pensava de forma musical, via o mundo e suas relações como sinfonia e dança; e isso faz toda a diferença em sua obra.
Estudar arte — seja literatura, pintura, música — é, muitas vezes, olhar para o conjunto artístico criado por alguém e perceber ali temas em comum que são costurados ao longo dos anos. Mas é mais fácil perceber isso com a distância do tempo — podemos ver com clareza que dos vinte aos trinta e cinco anos o artista trabalhou a questão do amor, que suas obras demonstram como ele se sentia e revelam claramente uma progressão da autoaceitação como contraponto a uma busca pela validação através do olhar do outro. Porém enquanto nós vemos isso, o artista estava vivendo essas coisas — e assim como nos é impossível analisar com clareza o período histórico em que estamos vivendo, também é dificílimo olharmos para a nossa própria vida e percebermos os nossos temas enquanto eles são a costura do nosso cotidiano. Quando mergulhados na dor, olhamos para os raios de sol — não queremos sofrer, não queremos entender os nossos temas, queremos apenas uma saída deles. Já para o artista, pegar todos os seus retalhos e enxergar um padrão é parte da arte — contudo, ainda assim, esses momentos dificilmente serão evidentes; o que se pode fazer é registrá-los dia a dia. O trabalho do artista é deixar vestígios de si, tornando a si mesmo os raios de sol na noite escura de outras pessoas.
Com isso, não quero dizer que a arte precisa ter uma função. A arte, como disse Oscar Wilde, é inútil — e, por isso mesmo, essencial. Ela cria espaço, iluminando pontos sensíveis. A arte existe enquanto pergunta, provocação, e também resposta para tais perguntas — ela não tem e não precisa ter uma função, mas tem uma consequência, que é nos tornar mais abertos à vida e às pessoas.
A questão da vida é que se há de vivê-la. Não há como acelerar a montagem: tudo precisa ser vivido no ritmo normal do tempo. Para o artista, isso pode ser angustiante, pois, ciente do tempo, busca entender suas próprias questões ao mesmo tempo em que age enquanto sujeito dolorosamente histórico, sabendo que suas ações — sendo elas grandes ou pequenas — estão em consonância com o momento em que vivemos e partem de pontos tão pessoais quanto públicos, já que a vida em sociedade faz com que a nossa existência seja compartilhada e tenhamos, portanto, temas em comum. Quem hoje em dia não está constantemente exausto? Essa exaustão é sintoma do capitalismo, no qual dolorosamente vivemos, e a compartilhamos como um código secreto embutido nas demoras de resposta, nos sumiços, naquele café com os amigos adiado semana após semana… Se tornou parte do tecido da vida. O artista olha para isso e pensa que sim, talvez um dia esse cansaço passe, mas esse dia não é hoje — e é preciso senti-lo e também criticá-lo para colocar-se fora dele, para olhar o que está acontecendo não apenas como algo comum, mas como algo que não deveria estar ali, não dessa maneira. O artista, então, cria sua arte com essa marca, marca que é tão pessoal quanto pública, tema de nossos tempos.
Quando estou escrevendo algo importante sinto uma inquietação correr pelo corpo. É como se houvesse uma energia que passasse pelos ombros, pelo peito, pela barriga, pelas pernas — sinto-a muito palpável remexendo todos os cantinhos do meu corpo, fazendo com que a palavra não seja apenas composta por letras e sufixos, mas por fisicalidade. Essa fisicalidade é o incômodo de olhar para si mesmo com olhos de artista — os sentimentos são sentidos, mas é através do olhar questionador do artista que eles podem ser traduzidos. Esse algo importante que escrevo é descoberto justamente por causa dessa sensação. É quando a energia da inquietação incômoda me sacode o corpo que percebo que estou prestes a entender algo durante a escrita — estou remexendo nas minhas gavetas, dando nomes aos meus sentimentos, deixando os meus traumas pegarem um ar.
Não acredito em impessoalidade. Tudo é pessoal. Se escrevo, escrevo porque algo me atravessou, porque deixou marcas, porque olho para essas marcas com estranheza e quero entendê-las, quero colocá-las no mundo; quero olhar para o outro e perceber ali uma pessoa também, alguém com quem podemos partilhar nossos pesares e descobertas. A arte não é solitária — ela existe enquanto diálogo. Ela responde a uma pergunta muito pessoal — e que varia de artista para artista de acordo com o momento que ele está vivendo — e é atravessada pelos ecos de tantas outras pessoas que coexistem conosco.
Cada vez mais caímos num mundo no qual a subjetividade é malvista, o que me entristece profundamente, pois tudo é pessoal. Negar essa pessoalidade é aceitar ser parte de um sistema capitalista que nos enxerga de maneira utilitária — uma máquina não tem emoções, não precisa ter emoções, uma máquina cumpre sua função. Então cumprimos as nossas funções, nos tornamos adultos funcionais, arranjamos empregos, passamos horas no transporte coletivo, mas ninguém se fala, não de verdade. No sistema capitalista, compartilhamos a nossa subjetividade com poucas pessoas — o parceiro, um ou dois amigos, talvez alguém da família… —, o resto são relações superficiais. Se se pergunta como o outro está não se espera que a resposta seja real — é apenas uma questão de educação na superficialidade, se você não estiver bem se arranje, o que eu tenho a ver com o outro — e o que o outro tem a ver conosco? Esquecemos que a vida existe em coletividade — nos deixamos levar pelo cansaço e encolhemos cada vez mais, diminuindo nossas redes de afeto, não conhecendo as pessoas verdadeiramente, sendo esmagados por um sistema que não quer que sintamos, que compartilhemos, que nos quer eficientes — e se não houver espaço para a troca, para os laços profundos, ainda melhor, pois é através dessas trocas que há questionamentos, e questionamentos são perigosos.
A arte é uma pergunta.
Não é à toa que em ditaduras os artistas são reprimidos. A arte questiona coisas incômodas — faz com que as pessoas sintam os seus sentimentos, entendam a realidade do outro, entrem em contato com outras formas de vida e passem também a questionar. É tarefa do artista ser o raio de sol na floresta escura — e isso é doloroso. O sol é essencial à vida, mas, por mais bonito que seja, às vezes ele ilumina lugares terríveis que não gostaríamos de olhar.
Jenny Odell em seu livro How to do nothing: resisting the attention economy compara Diógenes, o filósofo grego que viva num barril, a um artista performático. A arte performática é uma arte que questiona — eu particularmente acredito que toda arte é uma pergunta, porém, às vezes essa pergunta é interna, cuja resposta será traduzida ao estilo do artista e reinterpretada pelas subjetividades de cada um, enquanto, outras vezes, essa pergunta é externa e nos coloca, a nós, pessoas apenas vivendo o cotidiano, num lugar de interrupção e incômodo. Essa interrupção pode causar sentimentos diversos, nem sempre bons, como a irritação — mas é justamente esse o objetivo, pois, assim, teremos de nos perguntar o que está nos incomodando, e então enxergaremos aspectos que, por vezes, ignoramos.
As histórias envolvendo Diógenes são as do segundo tipo. Acredito que a autora faz todo o sentido ao falar dele como um artista performático, porque se viver é performance (e uma performance repleta de regras sociais que seguimos para nos adaptarmos e nos darmos bem em sociedade sem chamar atenção negativa), então romper com esse modelo, questionando verbalmente e também na forma de viver, é performático. Trata-se, de certa maneira, de uma intervenção na costura da vida, de um grito no cotidiano que faz com que as pessoas parem e tenham reações diversas — umas com riso, outras com escárnio, e ainda há quem fique irritado. Mas uma provocação existe e funciona porque há algo em nós que é remexido — de certa forma, é uma oportunidade para questionar e descobrir esse algo. Porém isso pode ser incômodo. São momentos-chave que nos indicam um caminho para a mudança.
Um dos meus livros favoritos é Um quarto com vista, do E. M. Forster. Em determinado momento da história, um personagem, que andava meio perdido depois de perceber que o mundo não fazia sentido, decide subir numa árvore no meio do mato, durante uma viagem à Itália com o pai e um grupo de pessoas desconhecidas do mesmo hotel onde estavam hospedados que foram fazer um piquenique num campo aberto, olhar lá de cima e gritar para o universo os seus credos: “Coragem! Coragem e amor”.
É com espanto que sua atitude é recebida, mais ainda pelo que ele faz em seguida — que não contarei, pois não quero estragar a experiência de leitura de ninguém. Porém o que importa aqui é que a partir daquele momento George Emerson, o personagem em questão, passa a comportar-se de maneira diferente. Ao invés de simplesmente seguir as regras sociais daquela sociedade eduardiana, ele as questiona e age da maneira como acha melhor de acordo com os seus credos, proclamados ao universo na copa de uma árvore: coragem e amor. Volto a minha mente a Diógenes, portanto — embora seus credos não fossem aqueles, ele se portava naquela sociedade grega da Antiguidade de maneira a questionar não apenas em palavras, mas com sua vida, a organização social vigente. Isso desconcertava as pessoas — desconcerta ainda. Isso é arte? Talvez. Mas acredito que seja ou não arte, o ponto é que quando somos tocados por algo, quando a vida nos atravessa e a arte ilumina pontos obscuros em nós, se permitirmos que essa luz se espalhe não apenas pensaremos de maneira questionadora como também viveremos assim — o que pode nos trazer um modo de vida belíssimo e revigorante, livre das amarras as quais nos acostumamos.
George Emerson foi atravessado e começou a questionar e mudar sua forma de ver e viver por alguns eventos que experienciou na Itália: a começar, estava cercado de arte, visitando os museus e as grandes obras, mas isso não ressoava em si enquanto ele mesmo não se abriu para a vida. No momento em que presenciou um acontecimento terrível e teve, além disso, a companhia de outra pessoa, formando um vínculo profundo com esta, ele entendeu que a arte é tradução da vida. A arte é uma pergunta e as obras artísticas são as respostas, as traduções do que sentimos. A vida faz sentido? Existe amor? Serei capaz de amar e ser amado algum dia? Há milênios investigamos essas questões nos lugares mais obscuros dentro de nós e criamos respostas que traduzem esses incômodos, mas que também nos enchem de esperança. “Coragem e amor”, como diz o livro.
Por que estou falando da vida se era pra falar do meu processo criativo? Porque acredito que as duas coisas andam de mãos dadas. Eu não sei qual é o meu processo criativo — apenas vivo e me permito sentir os meus sentimentos. Às vezes, é desconfortável e tudo o que eu quero é fugir; às vezes, é maravilhoso e me sinto conectada ao universo e às pessoas ao meu redor; de qualquer forma é sempre interessante e genuíno.
Eu não sou uma escritora conhecida ou uma grande artista — e não estou preocupada em sê-lo. Como já contei em outras edições, eu medito bastante — e a meditação me ensinou a entender a mim mesma e a acessar sem medo esses lugares desconfortáveis que todos nós temos. Além da meditação mais padrão, escrever é, para mim, meditação — é um processo meditativo no qual esvazio a mente e apenas traduzo aquilo que sinto.
Quando começo a meditar muitas imagens aparecem na minha mente: vejo rostos de pessoas conhecidas ou não, lugares, lembranças muito específicas de dias comuns que nem sabia que havia arquivado, dúvidas se materializando como palavras escritas em letras enormes e coloridas, luzes, mar. Quando vou dormir a mesma coisa acontece, mas aí adormeço; na meditação, não. A meditação, de muitas formas, é ao mesmo tempo uma escuta ativa e um esvaziamento. Deixo tudo o que está dentro de mim correr livre, tomar um ar — e descubro coisas que nem sabia que estavam lá. Ouço suas vozes, tomo alguns sustos ao ver certos rostos no meio do caminho… Mas o interessante é que logo tudo se acalma e entro num estado de transe muito interessante que me alinha comigo mesma e com o universo. Escutando ativamente a minha alma eu ouço a alma do mundo.
A escrita também é assim.
Vou escrevendo sem planejar o texto. Se for um artigo, por exemplo, tenho uma ideia do tema, mas me permito ser tomada pelo espírito do entusiasmo e escrever sem me colocar barreiras. Depois, tudo escrito, deixo respirar por alguns dias e volto para costurar o texto, dar um formato mais acadêmico. Para os outros textos o processo é mais direto — simplesmente os escrevo e não preciso me preocupar tanto com as regras depois. Porém a grande questão da escrita como prática meditativa é que, deixando o caos interno correr livre nesses momentos, descubro coisas que nem sabia que estavam lá — e faço conexões inusitadas justamente porque me permito ouvir a minha alma.
Dia desses eu estava assistindo a um vídeo de um rapaz que estuda poesia. O vídeo em questão era sobre John Keats, um dos meus poetas favoritos. O rapaz dizia que era impressionante como os manuscritos do Keats não têm praticamente rasura alguma — ele simplesmente escrevia o que lhe vinha à mente e era isso.
Gosto muito do Keats e, portanto, já li bastante coisa dele — desde seus poemas até suas cartas, que são belíssimas. E realmente, ele não mexia muito no texto — tanto que seus manuscritos são cheios de erros de ortografia porque o menino Keats escrevia tão rapidamente que comia letras. Não é que ele não trabalhasse o texto — há alguns poemas nos quais ele trabalhou mais tarde, deixando-os com rimas melhores etc. —, mas ele tinha a escrita como prática meditativa. E isso resultava em algo no qual ele não mexia quase nada porque era, no final das contas, genuíno. Talvez não fossem os melhores poemas da literatura inglesa (coisa da qual eu discordo, pois os acho incríveis, mas enfim), porém, eram repletos de sentimentos e uma sensação de despertar no mundo, de ouvir a voz da natureza, de ser atravessado pela beleza da vida. Em uma carta para John Taylor datada de 27 de fevereiro de 1818, Keats diz:
“se a Poesia não vier naturalmente como as Folhas de uma árvore, é melhor que não venha.”
O que é esse “se a Poesia não vier naturalmente”? É ouvir a voz da natureza. É se permitir ser atravessado pelas experiências da vida e senti-las, não embotar os sentimentos, mas realmente viver tudo que há para ser vivido com a certeza de que se está aberto e atento, presente no momento — e traduzir isso em arte. Não se trata de rejeitar as regras da métrica poética, mas de se permitir criar porque se entende que também se é parte do mundo — você fez uma pergunta e as árvores lhe sussurraram uma resposta: você também é parte deste mundo, então viva.
Eu ia escrever sobre as minhas referências mais constantes nessa eterna pesquisa de artista (o Tempo, o amor, períodos históricos que me fascinam, a poesia dos Românticos etc.), mas o que saiu foi isso. E escrever, para mim, é realmente isto: simplesmente esvaziar a mente e ouvir a alma, traduzindo as respostas em palavras. Nunca sai o que eu esperava, mas sempre sai algo que me faz entender melhor a mim mesma e ao mundo. Hoje, no caso, acho que o que costurei é que no momento o que mais me atravessa enquanto pessoa e artista é essa conexão que criamos com as pessoas através dos laços de amor. Ninguém vive sozinho — ainda bem.
Algumas coisinhas:
Neste mês, estamos lendo O Morro dos Ventos Uivantes, livro de Emily Brontë, no Clube do Livro QC, livro maravilhoso que pesquiso no mestrado, e estou animada demais para conversar sobre ele com vocês. O encontro será no dia 27/07, às 16h, por videochamada — cujo link será enviado no grupo do telegram.
O QC tem uma campanha no Catarse — confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥
Dentre as recompensas, está o Clube do Conto: é semelhante ao Clube do Livro QC, mas de contos, pois adoro contos e sinto que poucas vezes temos a oportunidade de nos aprofundarmos neles. Assim, mensalmente debatemos a fundo um conto escolhido por mim. O próximo encontro será no dia 28/07, e nele falaremos sobre Olalla, de Robert Louis Stevenson. Os links dos encontros serão enviados para os apoiadores do Catarse do QC como recompensa — dentre outras coisas, como um guia de leitura da obra do mês etc. Espero encontrá-los lá. :)
Por hoje, é isto.
Abraços e bebam água,
Mia
Fiquei hipnotizado pelo seu texto. Ele é um texto comum, no sentido particular das coisas que estudo, mas como você mesmo disse, a subjetividade humana ganha vida quando se ouve a voz interna da alma. Ouvi com o coração, portanto, aceitei a sua perspectiva mesmo que para mim é conhecida.
Adorei o texto, me identifiquei em várias partes. Também me lembrei de O barão nas árvores, do Ítalo Calvino. Já leu? 😘