#18 - Todos os caminhos levam ao zahir
"não perca ítaca de vista, pois chegar lá é o seu destino" (konstantínos kaváfis)
Querido leitor,
Ano passado, fiz uma leitura que me deixou pensativa desde então. Trata-se de A fera na selva (na tradução de José Geraldo Couto), uma novela de Henry James. A trama é basicamente a seguinte: John reencontra May, uma amiga meio flerte de sua juventude, uma década depois da última vez em que se viram. Ela lembra que ele era muito tenso e guardava consigo um segredo — segredo este que ele não confiara a mais ninguém, exceto a ela. A partir de então, eles retomam a amizade e acompanhamos a vida toda dos dois, vida esta que gira em torno do tal segredo.
O tal segredo é misterioso — John sempre teve a forte sensação de que haveria um grande acontecimento em sua vida. Ele não sabia o que era, mas tinha a certeza de que se tratava de algo drástico, sempre à espreita, um destino do qual ele não podia escapar — uma fera na selva. Por isso, abdicou de muitas coisas, como um casamento, uma família, ter relacionamentos duradouros… Tudo porque não queria impor a ninguém a tragédia que esperava por ele ao longo do caminho. “Algo estaria à espreita dele, por trás de uma curva no desenrolar dos meses e dos anos, como uma fera na selva. Pouco importava se a fera à espreita estava destinada a matá-lo ou ser morta por ele. O ponto decisivo era o bote inevitável da criatura; e a lição decisiva era que um homem de valor não se permite partir acompanhado de uma mulher a uma caçaça de tigres. Essa foi a imagem que acabou fazendo de sua própria vida.” Essa convicção o tornou um homem suspenso no tempo, suspenso em si mesmo. E May, a única pessoa com quem ele podia conversar livremente, falando de sua convicção, da fera na selva, também viveu com ele uma vida inteira à espera daquele algo grandioso que aconteceria.
“Você disse que tivera, desde os primeiros tempos, como a coisa mais profunda dentro de si, o sentimento de estar reservado a algo raro e estranho, possivelmente prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde lhe aconteceria, algo de que você tinha nos próprios ossos o pressentimento e a convicção, e que talvez o aniquilasse.”
— A fera na selva, Henry James
Não vou entrar em mais detalhes da história, pois realmente espero que vocês a leiam — é uma das melhores coisas que já li, o que não é de se surpreender, já que estamos falando de Henry James. Mas o que posso dizer é que a ideia da fera na selva tem me assombrado desde então.
Joan Didion escreveu em O álbum branco que “Para sobreviver, contamos histórias a nós mesmos”. É uma questão de narrativa pessoal — precisamos dar sentido às nossas vidas de alguma forma. Nos contamos histórias que nos fazem sentir melhor, que nos fazem continuar dia após dia, ainda que não haja nenhum indício de melhora real na nossa situação. Contar histórias faz parte de ser humano. Desde os tempos mais remotos, as pessoas contam histórias umas para as outras. E às vezes nos convencemos de que elas são verdade. Às vezes, enxergamos sinais no cotidiano, sinais que nos prometem algo grandioso, e nos guardamos para aquele algo, mesmo que não tenhamos certeza de que se trata ou de quando virá.
Foi o caso de John. Convencido desde sempre de que algo estava à sua espera, passou a vida nesse momento de suspensão. Para tal, abdicou de muita coisa por não considerar justo que outra pessoa encarasse com ele a fera na selva. Cada minuto de seu tempo era um minuto a menos até a fera na selva, que poderia saltar de qualquer lugar, interromper qualquer conversa, roubar qualquer momento. O centro de sua vida tornou-se aquele acontecimento inominável pelo qual ele esperava.
“Bem, digamos que é uma coisa que eu devo esperar — encontrar, encarar, ver irromper subitamente na minha vida; possivelmente destruindo a consciência de qualquer outra coisa, possivelmente me aniquilando; possivelmente, por outro lado, apenas alterando tudo, atingindo a raiz do meu mundo e me deixando à mercê das consequências, qualquer que seja a forma que elas assumam.”
— A fera na selva, Henry James
Faz mais de 10 anos que li O Aleph, de Borges, no qual ele fala do zahir, conceito daquilo que nos é visível, incapaz de passar despercebido. Para Borges, tenho aqui anotado, o zahir é “algo que uma vez tocado ou visto, jamais é esquecido — e vai ocupando nosso pensamento, até nos levar à loucura”. John tinha seu zahir em A fera na selva — mas muitos de nós temos um. Eu certamente tenho o meu — algo que uma vez tocado ou visto, jamais é esquecido. Algo pelo qual esperamos, mesmo que não queiramos. Algo que está sempre presente, que ocupa papel central na nossa vida, ainda que não faça parte do nosso cotidiano.
Há um poema de Konstantínos Kaváfis abrindo O Zahir. No poema (infelizmente sem o crédito de tradução), o autor diz:
“Não perca Ítaca de vista,
pois chegar lá é o seu destino.
Mas não apresse os seus passos;
é melhor que a jornada demore muitos anos
e seu barco só ancore na ilha
quando você já estiver enriquecido
com o que conheceu no caminho.”
Em O Zahir, é dito que nosso zahir — aquilo uma vez visto e jamais esquecido — pode nos levar à santidade ou à loucura. Mas como saber qual caminho estamos seguindo até que seja tarde demais? Como lidaremos com o que nos disse a oráculo, com nosso destino, com a viagem até Ítaca, senão obsessivamente? Ouvir os sinais do universo nos deixa mais próximos da loucura ou da santidade? Talvez haja um equilíbrio.
Ao mergulharmos em nossos temas pessoais, podemos nos perder nas possibilidades daquilo que desejamos que aconteça, daquilo que enxergamos como algo que almejamos e daquilo que nos é destinado. Existem duas maneiras de lidar com isso: ou mergulhamos no nosso zahir, deixamos a fera na selva nos consumir, nos levar à loucura, ditar o ritmo de nossos dias e nossas escolhas, afinal sempre estaremos esperando por ela, ela virá a qualquer momento, ou seguimos em frente acreditando que nosso zahir é o nosso destino — e que chegaremos lá independentemente do caminho tomado. Todos os caminhos levam ao zahir.
Como alguém que presta atenção aos sinais do universo, conheço meu zahir, e espio às margens do caminho para que não me enlouqueça. Não quero ser como John de A fera na selva, não quero acreditar tanto que algo me espera que esqueça da jornada para chegar até lá. Se for para chegar, chegarei independemente do caminho. Muitas vezes, me questiono se o que vejo são sinais ou se são apenas manifestações do meu desejo. Mas então acontecem coisas que me indicam o caminho, coisas que não dependem de mim, inesperadas, poderia até chamá-las de mágicas — e, por um acaso ou por obra do destino, essas coisas dão certo, da maneira como vi que dariam. É o caso do mestrado.
Semana passada, recebi a notícia de que passei na seleção de mestrado de Letras — Estudos Literários da UFRGS. Eu ainda não acreditei totalmente que isso de fato aconteceu, mas aconteceu. Faz alguns anos que venho acalentando a ideia do mestrado — e tive muitas ideias de projetos para tal, mas algo me dizia para esperar porque a pesquisa iria me encontrar na hora certa. E assim o foi — lendo Antígona, especificamente a introdução da edição da Penguin-Companhia, tive um insight que me levou ao meu tema do projeto de pesquisa. Tenho me dedicado a ler tudo sobre isso desde então — desde o início do ano —, unindo duas coisas que amo: o gótico vitoriano e a Grécia antiga.
Escrever o projeto foi uma experiência mágica. Não sabia se daria certo — na verdade, duvidei até o último instante da possibilidade de dar certo —, mas sabia que estava fazendo o que amo. Tal qual Odisseu voltando a Ítaca, me volto para o que amo. E acredito com todo o meu ser que estamos sempre no caminho certo quando fazemos aquilo que amamos. A energia do amor é capaz de renovar olhares, abrir caminhos e despertar o entusiasmo necessário que precisamos durante uma longa jornada.
Que esta seja bela.
Textos da semana
Anne Lister e Virginia Woolf: o diário como expressão do amor lésbico (Isabella Vaz)
O Mal do Século e o alívio encontrado na morte (Sophia Rey)
Hamnet, uma ode shakesperiana (Evelyn Clen)
5 curiosidades sobre a vida de Jane Austen (Isadora Bispo)
Obra de arte da semana
Leda e o Cisne, de Leonardo Da Vinci, é uma pintura a óleo datada de aproximadamente 1510. É difícil escrever sobre as obras de Da Vinci, principalmente as que foram encontradas, redescobertas ou atribuídas a ele, portanto, talvez seja mais seguro dizer apenas que a pintura é do século XVI. A obra representa o mito da rainha Leda de Esparta e Zeus, que, transformado em um cisne, seduziu a rainha.
A história conta que após a união, Leda colocou dois ovos dos quais após chocados nasceram quatro crianças: Helena, Clitemnestra, Pólux e Castor. Segundo o mito, Castor e Clitemnestra eram filhos do marido de Leda, o rei Tíndaro, enquanto Helena e Pólux eram filhos de Zeus. Independentemente da paternidade biológica das crianças, todas foram criadas por Leda e o rei de Esparta. Na pintura de Da Vinci, Leda está representada no centro com os braços ao redor de um cisne, que também parece abraçar a jovem, com sua asa apoiada em sua cintura e quadril. Próximos aos pés de Leda, dois ovos que parecem ter chocado há pouco. Dentro de cada um, dois recém-nascidos vêm ao mundo.
Se levarmos em consideração o mito, é possível pensar que de um ovo nasceram os filhos de Tíndaro, e de outro os de Zeus. Da Vinci muitas vezes possuía obsessões momentâneas, assim como nem sempre terminava as encomendas que recebia, mas no que diz respeito a pintura em questão, Leonardo não apenas a finalizou, como antes produziu desenhos com o mesmo tema. É interessante observar também que todos estão em espaço aberto, assim como grande parte das representações do mito de Leda e o Cisne, mas na pintura de Da Vinci, não são apenas eles que foram representados, e também não apenas Helena, mas todas as quatro crianças ao lado das cascas dos ovos chocadas. Observando os planos da pintura também é possível notar que as crianças olham para cima em direção à mãe, e ela as observa olhando para baixo, no mesmo momento que o cisne observa Leda. A harmonia está por toda a pintura. Além disso, ela não representa o momento em que Leda foi seduzida pelo cisne, e sim após o ocorrido, com os ovos chocados e as crianças divinas e humanas já nascidas. Dentre elas, a futura rainha de Esparta, Helena, que como sua mãe, foi uma bela mulher, seduzida pelos deuses por um bem maior — no caso de Helena, para ser o ponto-chave de uma das mais famosas histórias já contadas.
Por hoje, é isto, gente.
Edição enviada com um pouco de atraso, pois a enxaqueca, às vezes ela aparece. Além disso, estamos lendo O papel de parede amarelo e outras histórias, de Charlotte Perkins Gilman, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 30/09, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
uhuuul, parabéns pela aprovação no mestrado, Mia! <3