#17 - Os fantasmas do Senhor do Tempo
"living with painful memories, loving with all my heart" (queen)
Querido leitor,
Me olhei no espelho e percebi que o meu rosto mudou.
No início do ano, conversando por videochamada com um ex-namorado da adolescência, agora um bom amigo, ele me disse uma coisa curiosa: que a forma como eu “porto a minha face” havia mudado. Me perguntei o que significava isso — portar a face. É algo estranho de se dizer para alguém. Segundo ele, tratava-se de um elogio, mas eu não tinha certeza disso.
Alguns meses se passaram, quase um ano inteiro, e encontro-me agora concordando com ele. O fato é que não me olho muito no espelho. Desde que troquei o guarda-roupa do quarto — em cujas portas havia espelhos enormes —, passo às vezes semanas sem me olhar, exceto por rápidas olhadelas no pequeno espelho do banheiro, enquanto lavo o rosto. Mas tal ação é automática e não significa muita coisa — não é um olhar atento, não é um encontrar-se a si mesma.
De forma geral, fujo das redes sociais — entro nelas apenas quando tenho algo a dizer, quando quero compartilhar algo que li ou coisa do tipo, não fico muito tempo olhando o que está acontecendo por lá. Mas tenho tido o hábito de ir diariamente ao meu abandonado Facebook especificamente para olhar as publicações antigas no “neste dia”. Tem sido interessante me deparar comigo mesma, com a minha versão adolescente de 7, 9, 12 anos atrás. Numa dessas, me deparei com um post que fiz há 7 anos, quando li O evangelho segundo a serpente, de Faíza Hayat (livro que havia encontrado aleatoriamente na biblioteca e pegado para ler apenas e tão somente por causa do título — a decisão foi acertada; o título é tão lindo quanto o livro em si). Este livro tem um dos inícios mais lindos que já li, e que nunca esqueci. Nele, é dito:
“Nesta manhã, compreendi que estou a deixar para trás a juventude.”
Reler esse início agora, tantos anos depois, me fez ficar nostálgica por aqueles dias, quando eu era apenas uma estudante de Jornalismo no primeiro ano da faculdade. Também me fez pensar nas mudanças por que passamos ao longo da vida, e como elas são vistas em nossa aparência. Talvez tenha sido isso que, dias depois, me fez olhar com atenção para mim mesma no espelho e me surpreender com o que vi.
O início da pandemia foi particularmente difícil para mim. Sempre fui alguém que tem tudo planejado, e eu tinha os próximos 5 anos da minha vida planejados. Além da angústia por comtemplar a face da morte, que assombrava a todos nós, a preocupação com família, amigos, namorado, eu também me vi, de repente, sem planejamento algum — e, pior ainda, sem a possibilidade de planejar nada, porque ninguém sabia o que aconteceria. Era impossível dizer quando — ou se — as coisas voltariam ao normal. Parece ridículo falar numa preocupação tão angustiante atrelada a planejamento em vista de que passamos por um momento terrível de doença e morte — o que são nossos planos perto da possibilidade de morrer a qualquer instante, de perder aqueles a quem amamos? Viver já era o suficiente — não era? Sim, era. Mas aprender a abrir mão do controle e a viver no instante presente foi traumático. Adentrei um tempo sem tempo — o tempo cronológico não fazia mais sentido, e tudo existia simultaneamente, o agora sendo vivido com o passado e visões de um futuro pelo qual aprendi a não esperar. Foi a energia dionisíaca que me ajudou nesse processo, e me voltei à Grécia antiga como não fazia desde a adolescência. Me ajudou a perceber que a perda do controle não precisaria ser, necessariamente, terrível — desde que eu não lutasse contra isso.
“Trata-se de um conceito bem grego, e muito profundo. Beleza é terror. O que chamamos de belo provoca arrepios. E o que poderia ser mais aterrorizante e belo, para mentes como a dos gregos e a nossa, do que a perda total do controle?”
— A história secreta, Donna Tartt
Mas, até conseguir lidar com o caos, eu vivi num estado de preocupação constante. E essa preocupação deixou marcas. Lembro de, no início de 2021, me olhar no espelho — quando eu ainda tinha espelhos no quarto — e perceber que havia criado um vinco entre as sobrancelhas. Era uma marca da angústia que 2020 deixou. Aquilo me incomodou — não por eu ser particularmente vaidosa, na verdade, eu poderia ser mais, mas sim porque aquela era uma marca que não deveria estar ali. Aquela era uma marca criada por uma situação prolongada de angústia intensa. É claro que o tempo deixa marcas — ninguém passa incólume pela vida —, mas aquele é o tipo de marca que deveria ocorrer apenas muito tempo depois, não ainda nos meus vinte e poucos anos.
Me olhei no espelho e percebi, com espanto, que a marca não está mais lá.
Relembrar diariamente as memórias da adolescência naquela rede social também me fez perceber que há outras coisas que não estão mais lá. Todas as minhas fotos da adolescência mostram alguém com um olhar muito diferente do que tenho agora — com uma espécie de barreira que hoje eu não tenho. Eu olhava para o mundo de forma desafiadora — e tinha motivos para isso, para além da própria questão da adolescência em si.
Esta semana, conversava com uma amiga e comentei com ela algo que notei: esses dias, o homem que abusou de mim quando eu era pré-adolescente apareceu de novo nas redes. Mais ou menos anualmente, ele aparece, tentando me seguir em tudo quanto é canto, mandando mensagens etc. E isso sempre, em todos os anos, desde os meus 13 até quase os 30, me atormentou. Menos neste ano. Neste ano, eu vi o perfil dele e consegui simplesmente abri-lo, bloqueá-lo e seguir o meu dia calmamente. Não que aquilo não tenha me causado emoção alguma — sigo não gostando, sigo com memórias ruins, sigo querendo ele longe. Mas eu posso, agora, olhar para isso ou lembrar disso sem me sentir quebrada, sem sentir que algo dentro de mim morreu naquela época, sem sentir que não há espaço para onde eu possa fugir. Eu não preciso mais fugir. Em A história secreta, Donna Tartt escreveu que (na tradução de Celso Nogueira):
“Os fantasmas existem mesmo. As pessoas, em todos os lugares, sempre souberam disso. E acreditamos neles, assim como Homero. Só que hoje em dia usamos nomes diferentes. Lembranças. O inconsciente.”
Tive um fantasma andando ao meu lado durante 15 anos da minha vida. Este é o primeiro ano em que ele não me atormenta, em que consegui, de fato, exorcizá-lo. Minhas memórias não me assombram mais.
Durante a pandemia, entrei num processo de cura interna que tem me deixado em paz. E, honestamente, eu nunca pensei que fosse conseguir estar em paz com isso. Se eu voltasse ao passado e falasse para a Mia de 13 anos que um dia ela estaria bem, bem de verdade, é certo que o meu eu pré-adolescente não iria acreditar. Mas eu estou bem.
E o meu rosto mostra isso.
Também durante esta semana, a
conversava comigo a respeito do retorno de Saturno. O meu retorno de Saturno começou junto da pandemia, e também terminou junto dela. E, como eu falei para a Helen, me sinto em paz. Não acho que acreditar ou não em questões astrológicas e/ou espirituais mude algo nesse sentido — ou elas existem ou não existem; seguimos nossas vidas, temos coisas a fazer, e não creio que o espiritual se preocupe com isso, ou puna aqueles que não acreditam, porque, se existe de fato, então cada um está vivendo o que deveria viver, sendo quem deveria ser. De uma forma ou de outra, só podemos ser quem somos. Mas é fato que o meu retorno de Saturno — considerado uma época em que Saturno, o grande Senhor do Tempo, nos coloca frente a frente conosco — aconteceu durante esses anos de pandemia, o que coincidiu com o tempo sem tempo, e com a obrigatoriedade de parar. Eu nunca parava. Deliberadamente, havia escolhido uma profissão que me obrigava a estar sempre em movimento, sempre ocupada. Eu saía de casa às 06h e voltava à meia-noite. Fiz vários cursos, estudei muita coisa, trabalhei em vários projetos ao mesmo tempo — e, embora boa parte disso tenha sido porque eu realmente amo estudar e mergulhar em assuntos, uma parte primordial é porque eu estava sempre fugindo de mim mesma, fugindo das minhas memórias. Mas eu não preciso fugir mais. Esses anos de tempo sem tempo me obrigaram a parar de planejar cada passo que daria e a viver o presente. Viver o presente é, de muitas formas, viver o passado. E encará-lo, sem as distrações do dia a dia às quais eu estava acostumada, me fez realmente entrar num processo de cura emocional que eu nunca acreditei que pudesse realmente existir.É estranho tentar explicar o que é viver feliz tendo problemas normais. Até há pouco tempo, vivi toda a minha adolescência e vida adulta assombrada por um fantasma, e o peso desse espectro me afastava não apenas de mim mesma, mas também do mundo. Quando algo ruim acontecia, eu não lidava apenas com aquele problema específico, mas com o problema e o trauma, e as memórias, e o fantasma. Nesse sentido, era difícil lidar com tudo. Ainda assim, sobrevivi. Mas nunca pensei que realmente conseguiria algo além de sobreviver. E hoje me vejo vivendo. E feliz. Realmente feliz. Isso, como meu amigo disse, mudou a minha forma de “portar a face”. Nem mesmo as marcas de estresse da pandemia podem ser percebidas no meu rosto agora, porque eu estou bem. E isso me deixa muito emocionada e verdadeiramente grata ao Tempo, que tanto corta quanto cura.
Há pouco mais de 1 ano, já sentindo essas energias se movendo em minha vida, postei algumas fotos com a seguinte legenda, um trecho de A história secreta:
“A vida parecia encantada naqueles dias: uma teia de símbolos, premonições, agouros. Tudo, de algum modo, se encaixava; a Providência, tímida e benevolente, revelava-se aos poucos, e eu me sentia na iminência de uma grande descoberta, como se em determinada manhã tudo fosse fazer sentido — meu futuro, meu passado, minha vida inteira — e me permitisse sentar na cama como se me caísse um raio e dizer: oh! oh! oh!”
Há alguns meses, tive um sonho no qual uma taróloga — que sempre me aparece em momentos específicos da vida para me dar algum recado importante — lia o tarot para mim e dizia que eu finalmente estava voltando a ser quem eu sempre fui. Senti verdade no que ela disse — assim como sentia, no ano passado, que as rodas do destino estavam se movendo, sinto agora que elas me levaram ao lugar onde eu deveria estar desde o princípio — me trouxeram de volta a mim mesma.
“I'm taking my ride with destiny
Willing to play my part
Living with painful memories
Loving with all my heart
Made in Heaven, made in Heaven
It was all meant to be”
— Made in Heaven, Queen
Textos da semana
Por trás do País das Maravilhas (Giulia Benincasa)
Seminário dos ratos: a crítica política de Lygia Fagundes Telles (Flávia Januário)
As mulheres em Hamlet sob o olhar de Um teto todo seu (Laura Ferracini)
Frank-N-Furter: Dioniso em The Rocky Horror Picture Show (Mia Sodré)
Vida e morte das seis esposas de Henrique VIII (Cecília Amaral)
Obra de arte da semana
Estou maratonando os filmes de Almodóvar. Sempre faço isso ao menos uma vez ao ano, e agora, com o lançamento do mais novo curta dele, resolvi que seria a hora perfeita. Não tenho uma lista certinha, nem sei por onde começar nem onde vai terminar, das comédias aos dramas, dos primeiros aos últimos, é certo que boa parte deles são filmes conforto para mim. Enquanto pensava em qual obra de arte falar esta semana aqui na newsletter, lembrei de uma dissertação que li alguns anos atrás, e em como em um dos capítulos há uma teoria a respeito de um dos mais famosos filmes do diretor. Nele, é falado acerca da relação entre A pele que habito e a pintura de Ticiano, Vênus de Urbino.
Vênus de Urbino é uma pintura a óleo datada de 1538, e atualmente se encontra em Florença, na Galleria de Uffizi. A obra tem como ponto central uma mulher. Ela está nua e deitada na cama. De acordo com o tótulo, a jovem moça é identificada como a deusa Vênus, mas, diferentemente das representações relacionadas ao mito de nascimento da deusa, na pintura de Ticiano ela foi representada em ambiente fechado. Ela tampouco está acompanhada por seres míticos, elementos aquáticos ou seus famosos cupidos, mas a deusa representada em ambiente doméstico também não está sozinha. Vênus está acompanhada de um pequeno cãozinho deitado na cama aos seus pés, e o que parecem ser duas damas de companhia. Uma delas parece carregar um vestido, o que dá a alusão de que em breve a jovem Vênus que encara diretamente o espectador vai se vestir com um belo vestido.
A versão mais famosa do nascimento da deusa é contada por Hesíodo. Ele diz que ela nasceu após os órgãos genitais castrados de Urano serem arremessados ao mar, e da espuma (“aphros”) ergueu-se Vênus. Desde então, ela representou o ideal de beleza dos gregos antigos, e foi constantemente reproduzida nas artes. A imagem e iconografia do nascimento da Vênus saída do mar sobreviveu e foi perpetuada desde a Antiguidade, mas representações em que a deusa foi estava em um ambiente mais privado também são diversas, dentre elas, está Vênus de Urbino. A pintura foi encomendada ou financiada pelo duque Guidobaldo II, da cidade de Urbino. A pintura de Ticiano também serviu de inspiração para o francês Édouard Manet compor sua Olympia em 1863.
No filme de 2011, dirigido por Pedro Almodóvar, a alusão à deusa do amor não está apenas na pintura de Ticiano. Outras obras representando a Vênus estão distribuídas pelo cenário, além dos movimentos e poses das personagens, que fazem alusão direta às obras, como Vênus com tocador de órgão (1550), de Ticiano, e Vênus ao espelho (1647), de Diego Velázquez. Isso acontece, por exemplo, na cena em que a personagem de Antonio Banderas observa Vera, antes Vicente, deitada em um ambiente que recria detalhes e a exata pose da Vênus de Urbino. Segundo Leidiane Alves de Carvalho em sua dissertação “A tirania da Vênus: uma discussão sobre a imagem da deusa e seus reflexos na arte”: “Por que o médico utiliza a imagem da Vênus como parâmetro para a criação de sua ‘mulher perfeita’? A resposta imediata vem da narrativa mítica do nascimento da deusa, que já daria pistas necessárias para compreendermos a natureza de Vera antes que o filme a revelasse: uma mulher que nasce da castração de um homem, Vicente, assim como a Vênus que nasce da castração de Urano por seu filho Zeus”.
A imagem da Vênus, principalmente no que diz respeito às representações artísticas dela, carregam consigo um ideal de beleza difundido há séculos.
O caminho que Vicente segue até se tornar Vera, durante e depois, é bem mais complexo que apenas essa parte da trama. Afinal, a pele que habitamos é aquela que de fato nos define? O filme é baseado no livro Tarântula, de Thierry Jonquet, publicado em 1984.
Mas focando apenas na relação entre as representações artísticas de Vênus e a personagem central do filme de Almodóvar, a perfeição que vem atrelada à sua imagem, e ao corpo de Vera, é construída através desse ideal feminino, que está presente no imaginário coletivo, não apenas no mundo das artes, mas também na sociedade como um todo.
A ligação com o mito se dá ao irmos direto à fonte: o nascimento de Vênus aconteceu após a castração do titã Urano, e, como resultado, houve a libertação da também titã Gaia dos abusos de Urano após um ato de vingança. Assim, o nascimento de Vênus e a própria deusa representam não apenas o amor, mas também o consentimento na relação. Isso me faz lembrar do final do filme — não darei spoilers a ninguém, mas a liberdade de Vera me faz lembrar de como a criação de Vênus também significou liberdade.
Por hoje, é isto.
Além disso, estamos lendo O papel de parede amarelo e outras histórias, de Charlotte Perkins Gilman, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 30/09, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
em retorno de saturno, muito caos e bagunca, nada fica no lugar, porem tambem estou me encontrando e sendo eu <3 muito lindoo poder identificar isso, e o amadurecimento e reconhecimento necessario, adorei as dicas tbm