#4 - As mulheres na história e a semana
Sappho, por Amanda Brewster Sewell (1891).
Querido leitor,
Penso em viagens no tempo com certa frequência.
Não é à toa que a minha série preferida é Doctor Who - a ideia de viajar no tempo, especialmente para o passado, me fascina. Embora existam muitos registros históricos, de diferentes épocas e lugares, sempre há algo novo para ser descoberto - especialmente quando nos atentamos ao fato de que a história, em grande parte, é escrita por homens brancos, famosos, ricos e colonizadores. Me instiga, portanto, a história das pessoas anônimas. Esse é um dos motivos para eu ter feito jornalismo - o desejo de contar histórias de pessoas comuns, que talvez nunca deixassem nenhum registro para além de uma certidão de nascimento e alguns números de identificação.
Também é o motivo para eu ter feito a minha pesquisa (e TCC) acerca das crônicas de guerra escritas pela Martha Gellhorn, a mais longeva correspondente de guerra do século XX, que cobriu praticamente todos os grandes conflitos bélicos desde a Guerra Civil Espanhola até as pequenas, mas devastadoras, guerras que estavam acontecendo na década de 1990.
O que torna as crônicas escritas pela Martha Gellhorn tão incríveis é a maneira como ela direcionou seu olhar não para as preparações e resultados dos conflitos, mas sim para as pessoas comuns que tinham de conviver com uma guerra pela qual não pediram, que destruía a suas casas, famílias e lazeres. São vidas que a história não se importou em registrar - como a senhora que embora tivesse perdido a parede da casa e boa parte do que lá havia, encontrava momentos de prazer ao cuidar de um passarinho que havia entrado lá e feito ninho. São vidas devastadas pela guerra, vidas anônimas que poucos se dignaram a registrar, ainda que essas fossem as pessoas mais afetadas por toda a destruição praticada por governos totalitários e genocidas presididos por homens egocêntricos.
Martha Gellhorn foi uma das raras pessoas com lugar de publicação a entender a importância da preservação histórica das vidas de pessoas comuns, especialmente de mulheres. E isso tem um peso enorme. Essas histórias precisam ser contadas.
“Embora eu há muito tenha perdido a fé inocente de que o jornalismo é uma luz orientadora, ainda acredito que ela é melhor que a escuridão total. Alguém precisa trazer as notícias, já que não podemos ver por nós mesmos.”
Um dos momentos aos quais eu queria voltar para poder registrar encontra-se na Inglaterra do início do século XIX. Em 1818, John Keats conheceu Fanny Brawne, uma jovem de apenas 18 anos por quem ele não demorou a se apaixonar. Mas o poeta morreu poucos anos depois, em 1821, após ter padecido da tuberculose por alguns anos. Sendo pobre e suas obras não tendo sucesso, Keats não pôde casar com Fanny, ainda que os dois estivessem noivos em segredo. Ao morrer, ele pediu aos amigos - especialmente a Brown - para que cuidassem dela, que Brown fosse "sempre o advogado de Fanny". Mas pouco tempo depois da morte de Keats, os amigos já espalhavam a ideia de que Fanny teria sido a responsável pela partida do rapaz, que morreu com apenas 25 anos.
É claro que essa ideia é absurda, mas assim era o mundo da época: ainda que Keats não fosse famoso, tampouco suas obras vendessem bem, e recebesse, a bem da verdade, muitas críticas, ele era um homem. E um homem querido por seus amigos. Já Fanny era uma mulher - e uma mulher que se interessava particularmente por moda, por costura, por bailes, por socializar com pessoas. Os amigos de Keats não conseguiam compreender como uma mulher tão fútil, aos olhos deles, poderia ter conquistado de maneira tão profunda o poeta mais romântico que já existiu. E a má (e imerecida) fama de Fanny Brawne foi perpetuada até 1936, quando a neta da irmã de Keats (também chamada Fanny) disponibilizou as cartas de Fanny Brawne para a avó, de maneira que finalmente seria possível perceber um pouco da personalidade da noiva do poeta.
Porque Fanny não era apenas a noiva de John Keats. Ela era engraçada - verdadeiramente engraçada. Achava todo mundo meio estúpido. Tinha gatos, cachorro e pombos de estimação - e fazia piada das brigas de casal dos pombos, assim como vivia dizendo que ia casar os pombos uns com os outros. Adorava moda, desenhava e costurava seus próprios vestidos. Lia muito - Shakespeare, Dom Quixote, Lord Byron (ainda que não gostasse tanto assim de Byron, concordando com a opinião do próprio Keats de que Byron era um poeta bem medíocre com alguns poemas bons)... E amou o Keats durante a vida inteira, mesmo após mais de 40 anos de sua morte.
A Fanny existiu para além do Keats. Ela não foi apenas a musa inspiradora de Bright Star (o poema), mas uma pessoa real, com interesses reais, que suportou o luto e tocou a vida em frente, inclusive cuidando da irmã do Keats, sendo ela mesma uma verdadeira irmã para a outra. E acredito que essas histórias deveriam ser contadas - por isso, sou muito grata a Jane Campion, que escreveu e dirigiu a obra-prima Bright Star (o filme), na qual conta a história de amor dos dois pelo ponto de vista da Fanny. Sim, Keats era um grande poeta, mas a Fanny não era apenas sua musa, tampouco alguém que lhe prejudicou. Ela era maravilhosa. E sua história deveria ser conhecida.
Infelizmente, as histórias das mulheres quase sempre caem no esquecimento - ou, quando lembradas, são permeadas de mitos maldosos.
Hoje, dia 04 de dezembro, é o aniversário da morte de Fanny Brawne, que faleceu aos 65 anos em 1865, 44 anos após ter perdido Keats, a quem jamais esqueceu - e é apenas nela que estou pensando hoje.
Quantas mulheres extraordinárias a história apagou? Quem se interessa em contar suas vidas?
Fanny Brawne em 1850, aos 50 anos.
Textos da semana
O fantástico entre o ser e o não ser: um caminho para entender a realidade
Apesar de não ser um movimento artístico propriamente dito, os elementos fantásticos integram a história da arte de maneira longitudinal, derivando principalmente das artes mitológicas e religiosas. Ao longo dos séculos, por todos os lugares, histórias e figuras de seres fantásticos – que hoje chamamos de monstros, espíritos, dragões, anjos, fadas, demônios, heróis, entre muitos outros – foram sendo reproduzidas, reinventadas e ressignificadas.
6 filmes sobre alienígenas para quem quer acreditar
Ao longo dos anos, essas narrativas foram desde uma crítica sobre o significado da existência humana no universo até um ode ao patriotismo estadunidense. Sempre muito populares, os filmes sobre extraterrestres abordam muito mais questões do que apenas os homenzinhos verdes e com certeza influenciam muitas obras para além da ficção científica. Os elementos clássicos, tradicionais, das narrativas sobre alienígenas, como veremos, marcaram o cinema permanentemente.
3 vezes Irma Vep
O cinema é ciência ou magia? Para o público, talvez seja o segundo. Através do cinema entramos em contato com o impossível. O que seria isso senão magia pura? Mas para quem trabalha atrás das câmeras ele é, sem sombra de dúvidas, uma espécie de ciência. Técnicas e fórmulas são elaboradas, testadas e usadas repetidamente para produzir os efeitos que parecem magia para a audiência. As três vezes em que a personagem Irma Vep aparece nas telas ao longo de 110 anos de filmografia são retratações dessa dança de conceitos, sensações, verdades e mentiras entre quem faz cinema e quem o consome.
Cleópatra: a mulher além do mito
Dela, verdadeiramente pouco restou além das narrativas românticas ou moralistas que a transmutaram em um mito, ora de uma mulher fatal, ora de uma figura trespassada pela paixão e loucura. Mas dois mil anos depois, o fato de sua figura ainda se insinuar na vida cotidiana diz muito sobre sua influência e magnetismo. Por trás das lendas de serpentes e tapetes enrolados, Cleópatra ainda se desvela como uma representação da força feminina que nunca esmorece. Não importa o quanto tenham tentado destruí-la ou reescrevê-la, ela se recusa a sair de cena. Ainda bem.
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Dublinenses: James Joyce diante da paralisia de seu povo
Buscando denunciar uma sociedade irlandesa estagnada pela situação política e ideais religiosos da época, James Joyce escreveu as histórias que compõem sua antologia. Durante muito tempo, a Irlanda era colônia da Inglaterra e sofria ataques diretos à sua cultura pelos ingleses. Artifícios como a imposição da língua inglesa sobre o Gaélico e da religião protestante sobre o catolicismo irlandês ilustravam a coerção cultural vigente. As narrativas desenvolvidas em Dublinenses se dão justamente quando parte da nação celta inicia a retomada e afirmação dos valores nacionais, o chamado Irish Literary Revival (Renascimento Literário Irlandês). Assim, a valoração ao catolicismo e à escrita no idioma gaélico passaram a ser meios de resistência por nacionalistas.
Obra de arte da semana
The academicians of the Royal Academy, por Johann Zoffany (1772)
Quando decidi pesquisar sobre o renascimento alemão e sua relação com a caça às bruxas, entendi que seria impossível não tocar no assunto da representação do corpo feminino no decorrer da história da arte. Para isso, é preciso também estudar sobre a vida do artista em questão e a razão para tais representações. Mas durante uma de minhas aulas, descobri uma pintura que representava os alunos e fundadores da Academia Real Inglesa, e fiquei muito surpresa ao descobrir que duas mulheres também foram fundadoras da Academia. Foi quando notei que eu nunca havia ouvido falar delas, e que sei muito sobre diversos artistas masculinos porque mesmo pesquisando sobre as mulheres em suas obras, no final das contas, eu sempre gastei mais tempo pesquisando sobre seus autores, já que a imagem da mulher foi e é representada no âmbito das artes sob o olhar masculino, o que não acontece apenas quando a mulher está no papel de musa, mas também quando ela é uma artista.
A pintura do século XVIII, de Johann Zoffany, apresenta a célebre fundação da British Royal Academy. No total, há trinta e cinco homens no quadro, dispostos casualmente em volta de dois modelos nus, e na parte superior do lado direito, dois retratos de duas mulheres estão expostos na parede. À primeira vista, parecem estar dispostos ali para decoração, assim como os outros elementos que compõem a cena. Mas na realidade, essas mulheres são Angelica Kauffmann e Mary Moser, as duas únicas fundadoras da Academia Real, que não foram incluídas entre os demais artistas.
Apesar do título de fundadoras, Kauffmann e Moser não eram autorizadas a assistir as aulas de modelo nu. Também não foram admitidas no conselho e não podiam desempenhar nenhum papel na governança ou direção da Academia. A exclusão das mulheres dos programas de ensino das Academias fez com que suas carreiras não progredissem seguindo as mesmas etapas das de seus colegas. As obras de Kauffmann abordavam temas históricos e mitológicos, assim como muitos de seus contemporâneos. Naquela época, esse não era um gênero comum para uma mulher trabalhar. Para elas, eram consideradas mais adequadas a representação da paisagem - como no caso de Moser, conhecida pelos seus trabalhos com flores.
As leis da Royal Academy nunca excluíram explicitamente as mulheres. Entretanto, a hegemonia masculina estava tão enraizada que não se considerou necessária citar a exclusão das mulheres de tais instituições. Então, tecnicamente, a presença das artistas femininas na Academia era permitida, mas apenas no século XX outras mulheres foram admitidas na instituição.
A pintura de Zoffany apresenta uma discussão acerca do credenciamento institucional feminino e como sua presença era relutante e simbólica.
No decorrer da história da arte, a mulher foi representada em papéis de modelo de beleza e sensualidade, principalmente ao ser observada por homens. Quando a representação do feminino diz respeito ao lugar de destaque no âmbito de artista e não do modelo, sua imagem e presença é por muitas vezes diminuída, ou até mesmo excluída. As imagens de Kauffman e Moser representadas na pintura de Zoffany, em molduras dentro do quadro principal, demonstram como o enquadramento pode ser discutido como uma questão de gênero e como este pode contribuir para a normatividade da sociedade. Porém nos dias de hoje — quando se conhece a história —, o busto enquadrado das artistas na composição principal se torna o pilar principal da cena e oferece uma discussão a respeito da representação da artista mulher no decorrer da história da arte.
Babi
Por hoje, é isto. Amanhã é uma nova semana - se cuidem.
E vocês sempre podem responder a esta cartinha pelo e-mail mesmo. Vou respondendo ao longo dos dias. :)
Abraço,
Mia