#2 - Querido Clássico: A memória e a semana
The lonely shepherd, por Patrick Branwell Brontë (1839).
Querido leitor,
Tenho pensado muito sobre o porquê escrevo.
Atualmente, estou lendo alguns livros, dentre eles o Cartas a um jovem poeta, do Rainer Maria Rilke. Logo nas primeiras cartas, Rilke pergunta ao jovem poeta, Kappus, se ele tinha a necessidade de escrever. Eu fiquei pensando muito nisso porque, para mim, escrever sempre foi algo tão essencial quanto comer e beber água.
Existem períodos em que eu não consigo escrever, por falta de tempo, muito trabalho, essas coisas da vida, e eles sempre me parecem intermináveis, um deserto gigantesco de dias indistinguíveis, um tempo sem tempo. Se não escrevo, não marco o tempo, não organizo as ideias e os sentimentos. Sem a escrita, não existo de forma consciente - existo enquanto ser humano que respira e faz suas atividades diárias, mas não enquanto uma alma. Desviando do sentido espiritual inerente à palavra "alma", quero aqui me focar naquele ponto do que somos lá no íntimo. Não uma jornalista ou uma professora, não alguém que gosta de ouvir música durante o banho, mas quem somos, aquilo que nos motiva, que nos faz sentir uma sensação de certeza e equilíbrio lá dentro do peito. Também é uma questão de memória. Para mim, isso é a escrita.
Conversando com algumas amigas durante a semana, falava a respeito do quanto o que sobrará de nós é aquilo que escrevemos. Enquanto namoros e amizades passam, a palavra permanece. Lendo as cartas do Rilke, me deparei com a mesma linha de pensamento:
“As coisas não são todas tão palpáveis e dizíveis como normalmente querem nos fazer crer: a maioria dos acontecimentos é indizível, acontece em um espaço que nunca foi visitado por uma palavra, e mais indizíveis que tudo são as obras de arte, essas existências misteriosas cuja vida é perene, ao lado da nossa, que é perecível.”
Enquanto a nossa vida passa, a arte fica. Isso sempre me deixa especialmente emocionada. Quando eu estava na faculdade, muitas vezes saía do trabalho, no centro de Porto Alegre, e passeava em algum museu antes de ir para a aula. Era dia de semana, então não havia quase ninguém por perto. Eu era uma espécie de assombração do museu - ficava caminhando por aqueles corredores, pensando que no dia em que nada restar do que há de mortal em mim, a arte ainda existirá.
As irmãs Brontë, Charlotte, Emily e Anne, também pensavam muito nisso. Mas a ideia delas de viver através da arte, da permanência da obra de arte enquanto nós nos desfazemos, era ainda mais poética (e talvez um pouco mística): elas acreditavam que os escritos de uma pessoa continham sua alma. Com carinho guardavam aquilo que suas irmãs falecidas haviam escrito, fosse uma assinatura num livro ou algo mais substancial. Uma parte delas estava ali, preservado para sempre; portanto, elas sempre existiriam. A memória é a evocação da alma.
Não é à toa que em O morro dos ventos uivantes, livro de Emily Brontë, o fantasma da Cathy aparece batendo à janela logo após o sr. Lockwood ler e reler a assinatura que a personagem havia escrito há tantos anos, naquela cama, em seus antigos livros que ainda estavam ali. Ao lermos os mortos, invocamos seus espíritos. Eles não morrem - assim como sua arte, sua memória persiste.
Isso é arte. E é algo lindo.
Foto de British Library.
Semana passada tivemos muitos textos interessantes no QC. Bem, eu sou suspeita para falar, já que edito o site e, antes de publicar os textos, converso com as gurias sobre as ideias de pautas, as aprovo, dou uma ajudada algumas vezes... Enfim, estou muito próxima do processo. Porém eu realmente amei todos os textos publicados, especialmente o da Stéffani, que me deixou completamente admirada pelo fato de que uma guria tão nova possa escrever tão bem, com tanta propriedade, a respeito de um tema denso como o socialismo nos contos de fadas de Oscar Wilde. Esse foi um texto que editei soltando exclamações de "que incrível!" o tempo todo.
Espero que vocês gostem dele - e dos demais - tanto quanto eu gostei.
Textos da semana
Histórias de fadas: fruição e marxismo em Oscar Wilde
Em Histórias de fadas, o que sobressai é a melancolia da vida e da sociedade e como cada história quase sempre culmina em morte. Oscar Wilde pode começar sua história com um “era uma vez”, mas não ousa terminá-la com um “felizes para sempre”; a virtude ou a falta de virtude faz o leitor crispar-se e as vãs lutas desmembram a esperança infantil dos adultos leitores, gerando não somente uma quebra da expectativa advinda de uma estrutura tradicional de contos de fadas, mas também incertezas que, por conseguinte, geram conhecimento (e transformação, intervenção).
Flush, de Virginia Woolf, e os cães do século XX
Virginia Woolf teve a ideia de Flush após entrar em contato com as cartas trocadas entre os poetas Elizabeth Barrett e Robert Browning. Flush, o cocker spaniel presente nas correspondências do casal, atiçou a mente imaginativa de Woolf com a sua personalidade excêntrica. “Eu estava tão cansada após As Ondas que deitei no jardim e li as cartas de amor dos Brownings, e a imagem do cachorro deles me fez rir tanto que não pude deixar de dar-lhe vida”, confessou a escritora, em carta, a sua amiga Ottoline Morrell.
Antígona e Jocasta: as mulheres em Sófocles
Os mitos gregos contribuíram para o fortalecimento da imagem feminina como incapaz. O mito de Pandora é um excelente exemplo disso: por ser curiosa e fraca, Pandora abre a caixa e liberta todas as maldições do mundo, pondo fim à Idade de Ouro - conhecida por ser uma época sem sofrimentos e doenças, longe do trabalho árduo e em eterna juventude
O idiota, de Dostoiévski, e as relações violentas
É possível ter diversas interpretações a respeito de seu personagem central, inclusive que este provavelmente é um dos livros mais autobiográficos do próprio Fiódor Dostoiévski, pois ele mesmo também sofria de epilepsia. Porém esse texto vai focar nas violências silenciosas, aquelas que são ditas diariamente e que também estão presentes nas relações amorosas, muito visíveis no quarteto Liév Míchkin, Rogójin, Nastássia e Aglaia.
Scary Monsters: os alter egos de David Bowie
Ao contrário da noção que muitos tinham sobre sua personalidade, David Bowie não possuía a extroversão de seus alter egos mais famosos. Na verdade, suas contrapartes eram projeções internas, construídas sobre o desejo de não expor a parte mais sensível do David Robert Jones que habitava no interior do artista.
Obra de arte da semana
Girl with a mirror, por John William Godward (1892)
Gosto de pensar que vivo em prol de obsessões momentâneas, sou movida por paixões que não duram muito tempo, mas sobrevivem o suficente pra me deixar fascinada pelos mais diversos assuntos que me fazem pesquisar incessantemente durante algumas semanas até descobrir tudo que posso, e aí sim perder o interesse e partir a caminho de outra paixão. Durante a semana, decidi pesquisar mais sobre as obras de John William Godward, mais especificamente as pinturas Girl with a mirror, de 1892, e Girl in yellow drapery, de 1901. É claro que como uma excelente procrastinadora, eu consegui sem muito esforço ignorar todas as minhas responsabilidades e focar na teoria de que as mulheres em ambas as pinturas são na verdade a mesma pessoa.
Tudo começou com o fato de existirem muitas semelhanças nos vestidos de ambas, mas logo notei que não era apenas isso. Passei a ver similaridades em seus rostos, seus cabelos e até mesmo em suas personalidades. Como conheço a personalidade delas? Criei uma para elas. Inventei uma história em que as mulheres de vestido amarelo de Godward são a mesma divididas pelo período de 9 anos. Uma moça olhando sua imagem no espelho, no auge de sua juventude. Depois, uma mulher mais madura e decepcionada com algo ou com alguém, talvez por não ser mais a menina que podia ficar o dia inteiro penteando os cabelos e olhando no espelho. É o peso da vida, o peso das responsabilidades, o peso da passagem de tempo - mesmo que ainda jovem, a mulher deitada com seu belo vestido amarelo agora é adulta, e a vida adulta às vezes pode fazer você se sentir muito mais velha ou muito mais jovem do que verdadeiramente é, e assim vêm as memórias e a paralisia por não saber como seguir adiante.
Girl in a yellow drapery, por John William Godward (1901)
Como uma futura historiadora da arte que estuda o Renascimento italiano e alemão, me recordei dos estudos de Aby Warburg. Ele foi um grande pesquisador e historiador alemão, interessado por diversos assuntos, culturas e iconografias. É conhecido como o precursor da iconologia moderna e desenvolvedor da chamada ciência da cultura. Os estudos de Warburg não seguiam necessariamente uma linha linear, e as imagens para ele eram tão importantes quanto a teoria, assim como a memória e a sobrevivência dessa memória. Quando sua biblioteca pessoal ainda estava na cidade de Hamburgo, — hoje está localizada na Universidade de Londres —, Warburg gravou em sua entrada o nome da deusa Mnemosyne, a deusa grega da memória. Mais tarde, Warburg desenvolveu uma de suas grandes paixões, o Atlas Mnemosyne, uma história da arte sem palavras. Durante a produção de sua tese sobre as obras de Botticelli, e também obras de Domenico Ghirlandaio, Warburg notou a aparição de uma figura feminina em movimento, em vestes flutuantes que denominou de "Ninfa" que, segundo ele, o assombrou para toda vida, e foi o pontapé para a criação do conceito que ele chamou de Pathosformel, a sobrevivência das formas. Trata-se de figuras carregadas de emoção, que são mais fáceis de perceber ao longo do tempo. Imagens que sempre sobrevivem, representadas em outros contextos, por outros artistas e temas.
O também historiador George Kubler enxergava a arte como a forma de resolver um problema, e as sequência de Kubler, entre todas as obras iniciais e finais, contam uma história, transformando-as de certa forma em uma sobrevivência das formas, similar ao Pathosformel de Warburg. Pensando assim, as pinturas de John William Godard fazem parte de uma mesma sequência, que com toda a certeza possuem irmãs similares nos mais diferentes lugares, com belas formas rodeadas de amarelo. Porém a fórmula da emoção, as formas "patéticas", a apaixonada e apaixonante sobrevivência das formas de Warburg, apesar do nome, Pathosformel não fornece uma fórmula calculável para identificar as ligações visuais entre as imagens. Em vez disso, apela à imaginação coletiva e individual para encontrar esses vínculos.
É divertido, inclusive, pensar que essas duas pinturas estão ligadas por uma história misteriosa, como a que criei, e como outros podem criar também, sobre as mulheres da pintura serem as mesmas ou não. Não apenas sobre as mulheres de amarelo de Godward, mas a respeito de tudo, e a memória assim pode se tornar imaginação, e a imaginação, memória.
Babi
The lady ghost, por Adelaide Claxton (1876).
A ideia era enviar a newsletter ontem, mas a vida, às vezes ela não permite que sigamos os nossos próprios cronogramas. Todavia fica o combinado de que a newsletter sempre será enviada aos finais de semana, no sábado ou no domingo, certo?
Por hoje, é isto. Amanhã é uma nova semana - se cuidem.
E vocês sempre podem responder a esta cartinha pelo e-mail mesmo. Vou respondendo ao longo dos dias. :)
Abraço,
Mia