#1 - A tempestade e a semana
Querido leitor,
Estava eu aqui pensando na pintura acima - que, por sinal, é o wallpaper que uso no meu PC. Seu título é Miranda e o artista responsável por ela é John William Waterhouse, um dos grandes nomes do movimento pré-rafaelita.
Miranda é personagem de A tempestade, peça de William Shakespeare - alguns dizem ser esta sua última peça. Tendo sido ou não o último trabalho de Shakespeare, o fato é que os pré-rafaelitas adoravam inspirar-se nela para contarem suas cenas através do pincel.
Esta semana eu conversava com uma amiga a respeito de algumas falas de A tempestade citadas por Marieta Severo no documentário sobre o Chico Buarque. Nele, ela diz, assim como quem não quer nada, o seguinte:
“Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos. E a nossa vida breve é circundada pelo sono.”
Essa é uma frase que vive na minha cabeça, de uma forma ou de outra. Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos - e mais: nossa vida breve é circundada pelo sono. Não é à toa, portanto, que Neil Gaiman inseriu A tempestade em sua narrativa de Sandman.
Há algo de misterioso e transformador no sono. Durante um intervalo e outro do trabalho, gosto de ler coisas aleatórias, pesquisar a respeito de algo, assistir a uma série... Dentre essas pesquisas, me deparei com um conceito espiritualista acerca de como a alma vive numa dimensão à parte durante o sono. É curioso pensar nisso - é também questão de crença. Se acredito ou não não importa muito. O que realmente importa é a beleza contida nessa ideia. Somos feitos da mesma matéria dos sonhos.
Nem todo mundo sabe, mas o Querido Clássico surgiu durante o sono. A ideia inicial havia sido a de um clube do livro - mas alguns meses depois sonhei com um site chamado Querido Clássico. Nesse site, várias mulheres escreviam sobre literatura, história, cinema, música, arte... Todas com um olhar carinhoso para o passado. De um sonho, surgiu o QC. O resto é história.
Mas algo que ainda menos pessoas sabem é que uma das principais inspirações para a estética do QC foi a pintura acima - Miranda contemplando o mar, seu vestido outrora branco agora já adquirindo uma tonalidade rosada, o céu repleto de nuvens, suas fitas voando dos cabelos amarrados, o vento soprando forte - mas ela está ali, olhando para algo. O que é esse algo? É o sonho - é o desejo. O sono, afinal de contas, nos leva à manifestação de vontades que não podemos ou não conseguimos realizar no mundo físico. É um lugar místico, à parte da materialidade, onde tudo é possível. É o sonho que contemplamos ao olharmos para o mar. É o que já passou que enxergamos ao fecharmos os olhos.
Foto de James Scott-Brown.
A conversa levou ao túmulo de Percy Bysshe Shelley. Poeta romântico, Percy viveu pouco, e sua vida também era repleta de sonhos. Há registros de que ele tinha visões terríveis de seres que o atormentavam. E a história da predição de sua morte é bem conhecida - Percy teve diversos presságios de quando, onde e como morreria. É possível dizer que isso começou após a morte de seu amigo e também poeta, John Keats.
Percy escreveu Adonais, uma elegia em forma de poema, assim que soube da morte de Keats. No poema, ele basicamente diz como morreria e onde seria enterrado. Rodeado de outros sonhos e visões para além daquilo que ele colocou em Adonais, não demorou muito para que tudo aquilo se mostrasse verdade - ou, ao menos, algo muito assombroso. Um ano após a morte de Keats, Percy Shelley morria. Em sua sepultura, onde foram depositadas as suas cinzas, encontra-se outra passagem de A tempestade:
"Nothing of him that doth fade,
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange"
Em tradução de Beatriz Viégas-Faria para a edição da L&PM, o trecho ficou assim:
“E nada estraga, e nem se perde:
Tudo nele se transforma, no mar,
Em algo mui rico e singular.”
É adequado porque Percy morreu afogado. Também porque ele sonhou com isso. E somos, afinal de contas, da mesma matéria de que os sonhos são feitos - o que não significa que eles sejam necessariamente bons.
No início do QC, havia a newsletter. Depois, não mais. E todo mês eu dizia para mim mesma que a retomaria - afinal, newsletters são uma forma muito sensível de comunicação, na qual não dependemos de redes sociais e podemos nos aventurar ao século XIX numa espécie de troca de cartas. Eu amo escrever cartas, é algo que me faz particularmente feliz. Então pensei: por que não voltar com a newsletter?
A ideia é semanalmente trazer uma reflexão acerca de algo relacionado ao mundo clássico - mas num formato mais epistolar do que o que fazemos no site - e falar também do que rolou lá no Querido Clássico durante a semana. A sessão seguinte será um apanhado dos textos que publicamos de 07 a 11/11/22. Gosto particularmente de editar o QC não porque é o meu site, mas porque as gurias têm ideias e interesses incríveis. O texto da Maria Clara, sobre A Mandrágora, de Maquiavel, por exemplo, é algo que nunca imaginei que leria. É um privilégio poder fazer parte de cada um desses textos como editora e contar com um grupo tão querido quanto o das redatoras - ou, melhor dizendo, das classiquers.
Espero que vocês gostem dos textos abaixo tanto quanto eu.
Textos da semana
A comédia romântica na Old Hollywood
A junção de amor e comédia no cinema não é algo dos últimos anos, pelo contrário. Esse fenômeno está muito presente na Old Hollywood, também conhecida como A Era de Ouro do Cinema Americano, referindo-se aos filmes hollywoodianos produzidos durante os anos 1920 até a década de 1960 nos Estados Unidos. Mas você sabe como tudo isso começou?
A Mandrágora, de Maquiavel, e o futuro da elite paulistana
Em A Mandrágora, o jogo entre a virtude cristã e a virtude maquiavélica (a tal da virtù) é usado como meio de satirizar a sociedade florentina da época. Curioso é perceber que, séculos mais tarde, no Brasil, Paulo Emílio Sales Gomes cria um livrinho – Três mulheres de três PPPês – com uma história que em muito se assemelha à A Mandrágora, de Maquiavel.
As vozes femininas da poesia russa
No Brasil, essas mulheres não possuem muitas traduções, porém fizeram a diferença com o seu trabalho, assim como qualquer outro autor de renome, trazendo em suas histórias a luta por direitos igualitários, a vontade de escrever desde muito jovens, bem como as dificuldades encontradas no meio do caminho por conta de seu gênero.
Clássicos de suspense e terror de Hitchcock inspirados em histórias reais
Em sua vasta filmografia, há alguns filmes adaptados tanto de obras literárias inspiradas em fatos reais, quanto de notícias que o cineasta costumava extrair dos jornais, sabendo que a arte imita a vida e que a natureza humana e a realidade podem constituir histórias bastante assustadoras.
O legado da literatura medieval através dos séculos
Os temas da literatura medieval tampouco se restringem a refletir uma realidade de sofrimento e amargura. Pelo contrário: falavam sobre amor, aventuras de nobres cavaleiros e lendas sobre criaturas encantadas. Tudo isso permaneceu através dos séculos, sempre se transformando. Está muito mais do que somente nos livros e filmes atuais, mas em um imaginário coletivo.
Miranda - The Tempest, por John William Waterhouse (1916)
Por hoje, é isto.
Se cuidem, bebam água e sintam-se à vontade para responder a esta newsletter por e-mail.
Abraço,
Mia