Querido leitor,
Quando eu era criança, acreditava que era amiga de todos os animais do mundo. Vivíamos em uma casa muito úmida — bem, toda a região aqui é úmida; lembro de, quando fazia o curso de biblioteconomia, ouvir o meu professor de arquivologia, nascido em Brasília, falar como uma das mudanças mais significativas ao vir morar nos pampas gaúchos foi o fator umidade, que simplesmente desafia a pessoa que só quer guardar seus livrinhos em paz —, e era comum aparecerem lesmas vezenquando. Lá pelos meus 6 ou 7 anos, ao voltar da escola, eu passava um bom tempo do meu dia conversando com as lesmas que apareciam na casa. Lembro de ficar completamente fascinada olhando aqueles seres tão esquisitos irem de um lado pra o outro, com uma cara tão engraçada, comendo umas plantinhas volta e meia. Pensava muito sobre como era ser uma lesma, e como era alienígena o mundo na perspectiva de uma lesma.
Bem, encontro-me novamente fascinada.
Junho e julho são os meses da temporada de ciclones aqui no RS. Geralmente, ocorrem um ou dois por ano, mas, neste ano, foram quatro — quase um por semana. Então, é claro, tudo ficou úmido e mofado — ainda estou tirando o mofo das coisas. Nessas, descobri uma lesma que aparentemente resolveu morar na minha janela. Por entre as frestas da janela ela fica. E há alguns dias, quando tirei a cortina do quarto para fazer uma boa limpeza, aproveitando que a temporada de ciclones havia terminado, descobri a lesma — e seus hábitos. Toda noite, às 2h da manhã, a lesma sai de seu esconderijo nos vãos da janela e faz sua caminhada noturna, caminhada esta que consiste em deslocar-se por uma das paredes do quarto, olhar para todos os lados, e, finalmente, voltar à toca. Acho isso completamente fascinante. Quando chega a hora da ronda noturna da lesma, eu simplesmente paro tudo o que estou fazendo — e, sendo uma pessoa insone como sou, geralmente é durante a noite que aproveito para ler, estudar, escrever etc. — para observar a lesma fazer seu percurso, dar sua voltinha diária. Just a silly little slug doing their silly little thing.
Isso me lembra dos medievais e sua fascinação por lesmas. Ninguém sabe ao certo por que o pessoal da Idade Média era tão obcecado por lesmas, mas qualquer um que goste de marginalia (a arte nas beiradas dos manuscritos medievais) sabe que há lesmas por todos os lados ali desenhadas — e, muitas delas, lutando com cavaleiros.
Existem teorias de que trata-se de uma alegoria para a morte, uma espécie de memento mori daquela época. Mas a maior parte dos pesquisadores concorda que o significado real se perdeu com o tempo, já que era algo tão óbvio que não foi registrado em nenhum documento sobrevivente àquela época. Pode, inclusive, se tratar de humor medieval — afinal, nada mais engraçado do que um cavaleiro grande e em sua brilhante armadura sendo desafiado por uma simples lesma. Quer dizer, é difícil não rir ao deparar-se, após a leitura de um texto sério, com o desenho de um cavaleiro medieval ajoelhado perante a magnífica lesma, pedindo que ela tenha piedade de sua vida.
Gosto de pensar que lesmas eram consideradas ameaçadoras — ou, ainda, apenas um recurso humorístico em tantos textos sérios, recurso este que segue funcionando no século XXI, pois, como não achar graça dessa galera medieval e suas lesmas de estimação? De qualquer forma, me sinto como um monge copista do século XIV, simplesmente fascinado por lesmas e as colocando na conversa em qualquer oportunidade. 🐌
Me sentindo tal qual a Clara, de A casa dos espíritos, nestes dias de tempo sem tempo (ou, melhor dizendo, em que o tempo começa a ganhar textura novamente, e o tempo sem tempo é reservado à hora mágica da madrugada, quando tudo parece possível e encantado, suspenso no fino tecido onírico que tanto me remete às delicadezas da infância), sonhos, visões e passeios noturnos de lesmas:
“Clara passou a infância e entrou na juventude sem ultrapassar os muros de sua casa, num mundo de histórias de encantamento, de silêncios tranquilos, em que o tempo não se marcava pelos relógios nem pelos calendários, e os objetos tinham vida própria, as aparições se sentavam à mesa e falavam com os humanos, o passado e o futuro faziam parte da mesma coisa, e a realidade do presente era um caleidoscópio de espelhos desordenados em que tudo podia acontecer. […] se confundiam a verdade prosaica das coisas materiais e a verdade tumultuada dos sonhos, onde nem sempre funcionavam as leis da física ou da lógica. Clara viveu esse período ocupada em suas fantasias, acompanhada pelos espíritos do ar, da água e da terra, tão feliz que não sentiu necessidade de falar durante nove anos.”
— A casa dos espíritos, Isabel Allende
Em outros assuntos, como vocês sabem, eu recentemente publiquei um livro. O lançamento oficial ainda não foi feito (pois temporada de ciclones etc.), mas, algumas pessoas já estão recebendo seus exemplares, e eu fico emocionadinha cada vez que alguém me marca nas redes dizendo que recebeu o meu livrinho. 🥺
Bem, conto aqui que finalmente consegui cadastrá-lo no Skoob! O Goodreads ainda não me permitiu tal proeza (amo o Goodreads, mas a decisão de mudar o cadastramento de livros foi péssima), porém, no Skoob ele já está. Quem se interessar em adicioná-lo por lá, basta clicar aqui. E, para quem quiser adquiri-lo, ele está disponível no site da editora.
Textos da semana
Os simbolismos da New Wave Tcheca: entre o caos e a esperança (Ana Carolina Pereira)
O adultério feminino na literatura oitocentista (Ana Júlia Neves)
Mandrágora, de Maquiavel, e os jogos de interesse do ser humano (Rebeca Pereira)
Romeu + Julieta: entre atos e telas (Evelyn Clen)
Erik, Quasímodo, Fera e a monstruosidade masculina na literatura francesa (Cecília Amaral)
Obra de arte da semana
Cartas celestes são mapas do céu, e são de grande valia não apenas para a arte, mas também para a ciência, sendo utilizadas também para facilitar as viagens de navegação. Com os mapas celestes é possível localizar constelações, galáxias e estrelas. Um dos exemplos mais antigos de uma carta celeste é o Zodíaco de Dendera, datada de 50 a.C. O responsável pelo mais difundido mapa celeste da era renascentista foi o artista alemão Albrecht Dürer, e seus mapas celestes permanecem até os dias de hoje como referência.
Em 1515, Dürer produziu os mapas celestes do hemisfério norte e do hemisfério sul, mas não produziu as xilogravuras supracitadas sozinho, o alemão teve ajuda de Johannes Stabius, um matemático e cartógrafo austríaco, que fez a projeção das cartas. E utilizou também, como base, o catálogo de estrelas de Ptolomeu. Após publicá-los em Nuremberg, sua cidade natal, os mapas se tornaram os primeiros a serem impressos na Europa. A criação da máquina de prensa de Gutenberg, no século XV, foi de grande valia para a publicação de livros e a disseminação de ideias — isso inclui os mapas de Durër.
A antiga tradição da confecção de mapas celestes é de origem árabe e islâmica, e as xilogravuras de Dürer foram inspiradas nesses modelos, em especial, o mapa do hemisfério sul. Pois, naquela época, em 1515, ainda sem acesso às navegações pelo sul do globo, os céus do sul não tinham sido mapeados pelos astrônomos. Então o artista alemão utilizou como base a tradição de representação do céu do sul de acordo com a cultura e a ciência islâmica medieval.
O mapa do hemisfério norte é mais completo, e, além de representações dos 12 signos do zodíaco e a exata colocação das estrelas das 48 constelações identificadas por Ptolomeu, 1300 anos antes, Dürer acrescentou retratos dos primeiros grandes astrônomos em cada canto do mapa; eles são: Aratus Cilix, Ptolomeu Aegyptius, Marcus Manilius e Al-Sufi. Graças à impecável reputação de Dürer como exímio gravurista e pintor, um dos precursores do Renascimento nórdico, seus mapas celestes se tornaram referência para outros artistas e astrônomos, em especial porque Dürer o criou tendo como base as pesquisas de astrônomos renomados.
Por hoje, é isto.
Além disso, estamos lendo A imortalidade, de Milan Kundera, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 26/08, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,