#14 - A morte do poeta e o despertar do sonho
“Paz, paz! Ele não está morto, não está dormindo — apenas despertou do sonho da vida.”
Querido leitor,
Às vezes me pergunto sobre a substância dos sonhos — o que faz um sonho? Quando tinha 10 anos, li uma matéria da Superinteressante que dizia que os sonhos eram uma complicada conexão de muitas coisas no cérebro a nos levar a uma viagem dentro do próprio subconsciente, terra da fantasia e de pesadelos terríveis. Eu acredito nisso, é claro, mas também acredito que exista algo além disso — nem tudo são reflexos do nosso subconsciente, nem tudo são coisas censuradas pelo superego, embora muito seja. Lembro do que John Keats falou durante um jantar particularmente famoso, comentando que Newton havia tirado toda a beleza poética do arco-íris ao explicá-lo através do prisma de cores da matemática. Claro, era uma provocação divertida — mas uma brincadeira vinda do último dos poetas Românticos, que via o mundo sob uma ótica de beleza mitológica, de encantamento, coisa que, aos poucos, desaparecia conforme a Revolução Industrial se aproximava. É maravilhoso que tenhamos explicações científicas para tantas coisas, mas também é lamentável que tenhamos, enquanto sociedade, perdido o encantamento pela magia da vida.
Anteontem, acordei de um sonho no qual beijava o rosto de alguém e dizia que tudo ficaria bem. Era um resquício de uma das vidas que escolhi não ter — uma vida que certamente não seria desagradável. E no mundo dos sonhos as possibilidades são infinitas dentro daquilo que somos. Foi Shakespeare quem escreveu, em A tempestade, que:
“Nós somos esta matéria de que se fabricam os sonhos, e nossas vidas pequenas têm por acabamento o sono.”
Se a morte é uma porta para outras vidas, o sono é um flerte com todas aquelas que poderíamos viver — todas as possibilidades que escolhemos ignorar enquanto acordados. Em A biblioteca da meia-noite a protagonista adentra diversas vidas possíveis enquanto está entre a vida e a morte. Num estado de inconsciência, mas ainda viva, ela não sabe se sonha ou se de fato viaja para dentro de todas as possibilidades que deixou passar, mas sabe que, independentemente disso, o resultado é catártico — e o que importa, afinal de contas, se trata-se de universos paralelos ou de outras vidas? O que importa é o que sentimos e como isso nos afeta.
Em Manfred, Lord Byron escreve:
“A Morte, como é chamada, é algo que faz os homens lamentarem,
Ainda assim, um terço da vida é passado dormindo.”
Nós tememos a morte, mas a experimentamos diariamente a conta-gotas. Talvez a morte seja apenas um estado onírico entre uma coisa e outra, um momento de descanso catártico, no qual todas as nossas possibilidades nos são apresentadas e sabemos que poderemos, a partir dali, fazer diferente, fazer melhor. Talvez acessemos conhecimentos em estado de quase vigília que não conseguimos perceber durante o ruído cotidiano do dia. Nós tememos algo intrínseco a nós — do sono e da morte não se pode escapar.
Ontem, foi o aniversário de 201 anos da morte de Percy Shelley. A vida de Percy era cercada de presságios, visões e sonhos, muitos que se concretizaram e tantos outros que ele transformou em poesia. Percy era cético — famoso por sua expulsão da faculdade após ter escrito um manifesto em favor do ateísmo —, mas seu ceticismo estava mais ligado a questões do cristianismo do que a algo como negar a existência de qualquer coisa espiritual. Isso porque ele mesmo tinha experiências que não conseguia explicar de outra forma. Foi o que aconteceu a respeito de sua morte, por exemplo.
Cerca de 1 ano antes, John Keats havia morrido. Percy sabia que Keats estava doente, com tuberculose, mas não sabia da extensão da doença — havia, inclusive, convidado o amigo para ficar em sua casa, em Pisa, quando soube que Keats estava indo para a Itália, para Roma, numa tentativa de escapar do gelado inverno inglês. Keats acabou não aceitando o convite por alguns motivos, dentre eles o fato de que sabia que estava morrendo e de nada adiantaria tal coisa. Ao saber da morte de Keats alguns meses após o ocorrido, Percy ficou profundamente triste e saiu correndo imediatamente para escrever um poema em homenagem a ele — foi assim que nasceu Adonais.
“Paz, paz! Ele não está morto, não está dormindo — apenas despertou do sonho da vida.”
Escrito como uma elegia, Adonais faz diversas referências aos clássicos gregos — combinando com o que Percy já havia dito sobre Keats quando, certa vez, criticaram o poeta por escrever tantos poemas sobre os mitos gregos e seus deuses sendo que ele não havia tido a educação formal com aulas de grego, ao que Percy respondeu “Ele era grego”, referindo-se a uma outra vida de Keats —, enchendo de beleza a morte do maior poeta Romântico inglês, e o mais jovem deles a morrer. O poema, desde seu título, já faz referência ao deus grego da juventude, fertilidade e beleza, Adônis. Para Percy, Keats lembrava Adônis por ser, agora, eternamente jovem, eternamente bonito, cercado da qualidade do eterno que existe na morte. Embora ateu, Percy fala do renascimento do amigo — o renascimento na beleza que compõe o universo, que também era assunto central na poesia de Keats.
Na época da escrita do poema, Percy já estava lidando com visões estranhas e sinistras acerca de seu futuro. E, como disse Hilda Hilst, “O poeta é aquele que é meio profeta”. O próprio Percy, em seu ensaio em defesa da poesia, havia escrito acerca da “profecia como um atributo da poesia. Um poeta é parte do eterno, do infinito, e do todo; para ele, o tempo e o lugar e o número não existem”. Não é de se espantar, portanto, que sua elegia à morte de Keats, Adonais, tenha presságios de sua própria morte.
“Espera um pouco… Ah! fala-me outra vez;
beija-me, apenas pelo tempo que pode durar um beijo;
e no meu peito vazio, neste rosto febril
que palavra, que beijo podem sobreviver
alimentados pelas mais dolorosas recordações,
agora que morreste, como se fossem uma parte
de ti, meu Adonais! Daria tudo o que sou
para me transformar no que tu és agora!
Mas estou presa ao Tempo, e não posso partir!”
Percy morreu 1 ano após ter escrito sua elegia a Keats — seu corpo, afogado durante uma tempestade no pequeno barco que navegava com um amigo. Levado pelas águas e já irreconhecível, só pôde ser identificado pelo que carregava consigo, o último livro de poesia de Keats, Lamia, Isabella, the Eve of St Agnes and Other Poems. Em Adonais, o tema da morte na água, num barco, já era falado. Percy, na estrofe final de seu poema, conecta sua alma a um barco que é levado para longe:
“O poderoso alento que nestes versos invocara,
sobre mim desce; o barco da minha alma é levado
para longe da margem, das tímidas multidões
cujos barcos nunca foram entregues à tempestade;
fendidas estão a própria terra e a esfera dos céus!
Sou arrebatado pelas trevas e pelo assombro
enquanto a alma de Adonais, a arder através do último véu
do Firmamento, como se fosse uma estrela,
vem guiar-nos, e brilha onde estão os Imortais.”
Há outros presságios de sua própria morte no poema, como quando Percy fala em ir para Roma, “onde está o túmulo”. Mary Shelley, esposa de Percy, depois de sua morte afirmou em carta que Adonais lhe parecia, agora, muito mais um presságio da morte do marido do que uma elegia a Keats. Depois de recuperado o corpo, quando fizeram o funeral e cremaram os restos mortais de Percy, seu coração permaneceu intacto — Mary, então, o guardou em sua gaveta durante o resto de sua vida, enrolado numa página dos versos de Adonais.
Duas semanas antes de morrer, Percy havia acordado a casa inteira no meio da noite por algo que ele não sabia se se tratava de pesadelo ou visão — o fato é que ele havia visto claramente Edward Williams (o homem que morreria com ele duas semanas depois) e Jane em seu quarto, cobertos de sangue, gritando que o mar estava invadindo a casa e que a casa estava desmoronando. Anteriormente, ele também havia visto uma criança emergir do mar, fazendo um sinal estranho para ele. Além disso, Percy havia tido várias visões de seu doppelgänger, seu duplo, o que era e sempre foi considerado um presságio de morte.
Ainda ligado ao mundo dos sonhos e das transformações — transformações como metamorfoses, o conceito grego de uma coisa que transforma-se em outra, nunca morrendo, sempre cumprindo seu destino —, em sua sepultura, onde foram depositadas as suas cinzas, encontra-se outra passagem de A tempestade:
“Nothing of him that doth fade,
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange”
Em tradução de Beatriz Viégas-Faria para a edição da L&PM, o trecho ficou assim:
“E nada estraga, e nem se perde:
Tudo nele se transforma, no mar,
Em algo mui rico e singular.”
Certamente, assim como Keats, Percy não morreu — apenas acordou do sonho da vida para viver outra realidade em metamorfose.
Em 2021, no bicentenário da morte do Keats, Julian Sands fez uma série de declamações dos poemas de Keats e Percy — uma delas no vídeo acima, no qual ele declama Adonais. Julian era embaixador do museu The Keats-Shelley House, em Roma, mas, muito antes disso, ainda na juventude, antes de ser um ator conhecido, ele já havia se identificado muito com Percy e se emocionado com os poemas de Keats. Mais tarde, em 1986, ele interpretou Percy Shelley em Gothic, filme que conta um episódio onírico do verão em Villa Diodati, que daria origem a Frankenstein e O vampiro. Certamente Julian ficou feliz em interpretar alguém de quem se sentia tão próximo, embora há séculos de distância. Desde então, Percy e Keats sempre estiveram presente em sua vida — ele dedicava parte dos seus dias à leitura, estudo e divulgação das obras dos poetas românticos.
Há alguns dias, o corpo de Julian Sands foi encontrado na montanha na qual ele desapareceu em janeiro. Sua perda é uma perda para a arte como um todo, mas, assim como Keats e Shelley:
“Peace, peace! he is not dead, he doth not sleep,
He hath awaken'd from the dream of life;
'Tis we, who lost in stormy visions, keep
With phantoms an unprofitable strife,
And in mad trance, strike with our spirit's knife
Invulnerable nothings. We decay
Like corpses in a charnel; fear and grief
Convulse us and consume us day by day,
And cold hopes swarm like worms within our living clay.”
Textos da semana
Julho é o mês de aniversário do Querido Clássico — e, neste julho, celebramos 3 anos de existência. Por isso, sugeri às gurias que escrevessem sobre seus clássicos favoritos como forma de celebração coletiva. Nesta semana, saíram os primeiros textos do nosso especial de favoritos da classiquers.
O espelho da sociedade: O retrato de Dorian Gray (Rafaela Anacker)
Hilda Hilst, uma escritora além do erótico (Lyriel Damasceno)
Nos passos do pequeno príncipe: a vida de Antoine de Saint-Exupéry (Isadora Bispo)
O pacto satânico de Doutor Fausto (Ana Júlia Neves)
Spock & Kirk: spirk em Star Trek e as fanfics gays dos anos 60 e 70 (Sharline Freire)
Obra de arte da semana
Pesquiso sobre Albrecht Dürer há praticamente 3 anos e fico sempre impressionada por como a cada dia descubro algo novo sobre ele. Mesmo que algum dia eu possa me considerar uma especialista sobre Dürer, tenho certeza de que sempre vai existir alguma parte de sua produção artística ou de sua vida que vai me escapar e quando descobrir vou ficar tão chocada e fascinada como sempre fico. Dürer foi muitas coisas: precursor do Renascimento na Alemanha, o artista que materializou a imagem da bruxa em territórios germânicos, o responsável pelo mais difundido mapa celeste da era renascentista — e inspiração para um quadro do Conde Drácula etc.
Drácula de Bram Stoker, de 1992, dirigido por Francis Ford Coppola, é um dos meus filmes favoritos, e não vou negar que minha fascinação por Dürer começou quando descobri que seu autoretrato, datado de 1500, serviu de inspiração para a criação do quadro do Conde Drácula que aparece nos primeiros minutos do filme de 1992. Ali, na parede do castelo do Conde, ele parece majestoso no belo quadro em que posa na exata posição de Dürer em seu autorretrato. Na cena em questão, Jonathan (Keanu Reeves) pergunta ao Conde (Gary Oldman) se a pessoa no quadro é algum ancestral dele, porque naquele momento Jonathan ainda não fazia ideia de que estava hospedado na casa de um vampiro.
Dürer pintou seu terceiro autorretrato antes de completar 29 anos, considerado um dos quadros mais complexos da história da arte e no que diz respeito à representação do próprio artista. Além do fato de aparentar estar mais velho do que nas representações anteriores de 1493 e 1498, na pintura de 1500, Dürer não apenas deixa registada sua imagem como um grande artista, mas também como um homem maduro. É um dos primeiros autorretratos em posição frontal. Sua semelhança com representações de Cristo também é evidente, não apenas pelos cabelos longos e a posição das mãos, mas também pela simetria e os tons que o artista escolheu. O ar de mistério que paira em boa parte da produção artística de Dürer também está presente e o fato de ele ter se inspirado em representações artísticas de Cristo para se representar, e centenas de anos mais tarde o mesmo autorretrato ter inspirado a imagem artística de Drácula, deixa tudo ainda mais fascinante.
Drácula de Bram Stoker é um dos filmes mais lindos da história do cinema, e nele é possível encontrar inspirações diversas do mundo das artes visuais — o autorretrato de Dürer não é a única. Nunca encontrei nenhuma ligação direta de Dürer com vampiros nem nada do tipo. Mas gosto particularmente da aura de mistério que a produção artística de Dürer transmite ao observador a ponto de alguém olhar seu autorretrato e pensar “olha, não parece um vampiro?”.
Por hoje, é isto.
Além disso, estamos lendo O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 29/07, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,
Que edição primorosa! Aprendi tanto! Obrigada, Mia!