Querido leitor,
Em algum momento da minha infância, passei a amar Shakespeare.
Não sei exatamente quando aconteceu, mas, certo dia simplesmente estava lendo Sonho de uma noite de verão pela décima vez, encantadíssima por aquele universo e pela magia de ler algo escrito há 4 séculos. Shakespeare junta, ali, duas coisas que amo desde que posso me lembrar: a Grécia antiga e poesia. Não havia possibilidade alguma de eu não amar Sonho de uma noite de verão.
Ontem tivemos nosso encontro mensal do Clube do Livro QC — desta vez, sobre Hamlet, outra peça do bardo. A reunião durou 3h entre muitas risadas e questionamentos acerca do nosso principezinho da Dinamarca. É curioso como Hamlet ainda provoca tantas discussões. É uma peça do início de 1600 cuja história base é ainda mais antiga, já que a estrutura é contada e recontada há séculos. Shakespeare, como muitos de sua época, pegava uma coisa ali e outra acolá na hora de escrever. A noção de plágio como a entendemos não existia, e a autoria era bem fluída naquela época, então isso não era uma questão. De qualquer forma, pelo que existe de outras versões da história, podemos saber que Shakespeare acrescentou seu gênio o suficiente para fazer com que seu Hamlet se destacasse.
Nós poderíamos brincar dizendo que Shakespeare fazia fanfic. A noção de fanfic também está longe de ser algo da época shakespeariana, então não se aplica de fato — mas os recontos em suas peças são os tataravós das nossas amadas fanfics modernas. E, claro, ele não é o único autor reconhecido a ter bebido de fontes antigas e populares na hora de escrever: quantos são aqueles que bebem do poço da Grécia antiga? Os mitos, cujos autores provavelmente jamais conheceremos, aparecem em praticamente tudo o que existe de arte.
Mas o que faz Shakespeare se destacar tanto dentre todas as pessoas que, como ele, escreviam em sua época no melhor estilo “cada conto aumenta um ponto”? Bem, são questões. Obviamente, Shakespeare permaneceu porque era popular. Por motivos completamente elitistas e insuportáveis, existe a ideia de que o clássico é uma leitura para poucos — difícil, inacessível, compreensível apenas para quem muito estudou e frequentou os mais cultos círculos da sociedade. E embora essa ideia tenha se propagado, não poderia estar mais longe da verdade. Clássico é aquilo que permaneceu através dos tempos e influenciou a cultura. Se influenciou a cultura — se todo mundo conhece, embora não saiba de onde, necessariamente — é porque trata-se de algo popular. E isto encontra um exemplo perfeito em Shakespeare.
Um dos motivos para sua obra ter perdurado enquanto tantas foram esquecidas é que Shakespeare escrevia coisas muito complexas de forma simples. Em vestes divertidas, ele apresentava um espelho para a corte e a sociedade, mostrando os problemas da época através de seus personagens — e mostrando a alma humana, com todos os seus questionamentos e angústias, em seus solilóquios. Shakespeare bebeu profundamente do cálice da Grécia antiga ao escrever suas peças, que, assim como as gregas, entregam entretenimento enquanto nos mostram quem somos, levando seus espectadores (ou leitores) a um processo catártico através de seus personagens.
Além disso, há beleza em sua composição. Os versos de Shakespeare são lindíssimos de se ouvir. Infelizmente, perdemos algo na tradução, o que sempre faz parte de se ler um texto traduzido. Temos a história, mas não a magia shakesperiana com as palavras. Já li e reli Hamlet algumas vezes, mas não deixo de me espantar e emocionar ao pensar na últimas palavras do próprio Hamlet: “The rest is silence”. No inglês, “rest” é uma palavra ambígua que pode significar tanto “resto” quanto “descanso”, no sentido de morte. Portanto, Hamlet, um personagem atraído pela morte, termina a peça dizendo que o resto é silêncio — o descanso é silêncio. Nada mais há para aqueles que já se foram exceto desfrutar de um silêncio eterno na tumba para a qual todos iremos, ricos ou pobres, reis ou plebeus. As quatro palavras com as quais Hamlet se despede de seu público — e da vida — reverberam nos séculos desde então, permanecendo com todos aqueles que se deparam com a tragédia do príncipe da Dinamarca.
Como todo bom clássico, Shakespeare está em tudo, e poucas vezes conseguimos realmente nos lembrar quando foi a primeira vez que o encontramos. Eu não sei de onde veio o meu amor por Shakespeare — mas sei que ele sempre esteve por lá, meu querido amigo morto.
Textos da semana
As Olympias monstruosas: a desumanização em Manet e O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann (Mia Sodré)
Representação feminina na literatura regionalista brasileira (Danatiele Segato)
Janis Joplin: entre a transgressão e a adequação (Evelyn Clen)
O tempo do amor em O Amor nos Tempos do Cólera (Bárbara Chaves)
bell hooks e o amor na infância em O meu pé de laranja lima (Débora Nogueira)
Obra de arte da semana
Recentemente, em uma conversa com um amigo ao voltar da faculdade, falamos sobre como é raro encontrar pinturas de mulheres sorrindo. Então lembrei que a Mia havia me apresentado pouco antes ao pintor espanhol Francisco Soria Aedo, em especial à pintura “Passion”, de 1926.
A conversa continuou e meu amigo, que é muito fã de música, citou o caso da capa do álbum Lust for life da Lana Del Rey. Fiquei chocada quando ele me disse que em 2017, na época do lançamento, muitas foram as críticas a respeito justamente do sorriso de Lana na capa do álbum. Eu verdadeiramente fiquei chocada porque sempre considerei a capa de Lust for life uma das mais lindas de Lana. Não apenas porque ela está linda em todos os sentidos, mas também porque parece que seu sorriso é genuíno e descontraído e a fotografia foi tirada pela irmã de Lana, Chuck Grant. E também porque sempre fez sentido pra mim com o título do álbum. Afinal, prazer pela vida, como não sorrir? Por que se incomodar com o fato de Lana estar sorrindo na capa de seu próprio álbum?
Então meu amigo me mandou uma matéria da época intitulada “The radical power of Lana Del Rey's smile”, escrita por Priscilla Frank. Dentre trechos em que se diz que o sorriso feminino não faz parte da fórmula típica exigida de musicistas e que sorrir faria com que de alguma forma a artista perdesse o respeito do público ou que representasse uma espécie de convite, há também esta parte:
“Existem muitas explicações para a predileção de fazer beicinho na frente da câmera. Simplesmente, sorrir não é legal. O gesto aprendido nem sempre é genuíno — pode ser muito indicativo de uma ânsia de agradar. [...] Mas há perigos adicionais quando se trata de uma mulher sorrindo, especificamente na capa de um álbum — seu álbum — significando sua arte, seu trabalho e seu eu. A expressão pode ser lida como infantilizante, indulgente, uma manifestação visual das pressões sociais que as mulheres são forçadas a suportar diariamente. Sorrir é satisfazer o assediador que grita: ‘Que tal um sorriso, mocinha?’, ou amenizar o mal-estar de todo e qualquer homem que passa e dá uma olhada. [...] Como uma mulher pode posar em uma fotografia sem parecer infantil, boba, pretensiosa, presunçosa ou vaidosa? Como uma mulher deve ser em um mundo onde ela sempre é vista e sempre está em algum tipo de palco?”
Este trecho me fez pensar muito porque é absurdo, principalmente o final. E a pior parte é que é verdade. Quando se trata de mulheres apenas vivendo suas vidas, e isso inclui coisas como apenas sorrir, tudo pode virar uma desculpa para críticas e assédio. Então eu voltei novamente à arte, pensei em quão raro é encontrar pinturas de mulheres sorrindo. Fazer essa conexão com as pinturas mais clássicas, que são meu foto de pesquisa, e o mundo contemporâneo, como o álbum de Lana, me fez pensar. As mulheres são desde sempre as mais representadas nas artes, mas isso muitas vezes vem do olhar masculino que as representa. Mais de 80% das representações de pinturas sacras são da Virgem Maria, e é sempre assim que ela é representada, como uma santa. É o espaço a que ela foi direcionada, assim como outras foram encaixadas no papel de musa, mártir ou bruxa. E em nenhum desses papéis, nem de uma artista como Lana, é permitido sorrir.
Por isso, pensei nas pinturas de Francisco Soria Aedo. Nelas, não são apenas as mulheres que estão sorrindo, o pintor até mesmo se pintou com um sorriso em um autorretrato. Mas as mulheres são maioria, e às vezes elas estão apenas escovando o cabelo ou conversando com alguém. No caso da pintura “Passion”, a mulher ali representada carrega um cacho de uvas e sorri para um homem de costas. É possível que esse homem seja o deus Dioniso, seja pelas uvas ou pela mulher se sentir à vontade com sua presença, inclusive para sorrir. Mas não é apenas para Dioniso que uma mulher deveria se sentir à vontade para sorrir e o gesto tampouco deveria ser visto como um convite ou sinal de fraqueza. E sim algo que ela fez porque simplesmente quis.
Por hoje, é isto.
Além disso, estamos lendo O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 29/07, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,