#12 - O caos, a natureza e Dioniso
o ciclone, a natureza, o tempo, meu livro e cultos dionisíacos
Querido leitor,
Junho e julho são meses de ciclone.
Todos os anos temos pelo menos dois ciclones aqui no estado — e todos os anos o evento cataclísmico é assustador. Semana passada tivemos um — e foi terrível, talvez o pior que já tivemos em todo esse tempo. A chuva torrencial caía causando comoção; podíamos ouvir as árvores vergando ao vento, objetos voando, a natureza se escondendo de uma força maior. Eu também me escondi. Ainda assim, houve alagamento e perdas — felizmente, apenas de coisas materiais. Uma caixa de livros foi atingida e passei o dia seguinte tentando salvar alguns dos que lá estavam, o que me fez comprar uma estante para organizá-los direitinho, já que eles não cabem mais em lugar algum e não quero perder outros livros. Alguns móveis foram prejudicados, coisas se perderam e o telhado teve seus prejuízos. Tivemos sorte. Isso tudo é material — em lugares aqui pertinho houve desabamentos, desaparecimentos e mortes.
Lembro de outros anos, de outros ciclones, quando a natureza, ainda que terrível, não se mostrou tão ameaçadora quanto agora, quando ainda se podia olhar para ela em seu terror e beleza. Ainda era assustador, às vezes voavam algumas telhas, mas não era tão forte a ponto de haver tamanha destruição quanto houve agora. Em outros ciclones eu lia à luz de velas enquanto temia que o vento arrebentasse a minha janela. Desta vez não pude ler nada — não apenas pelo ciclone (embora também tenha sido por isso, já que se provou impossível ler ou ter paz quando tudo está alagando e não há o que fazer), mas também porque eu estava com conjuntivite. Mal podia abrir o olho afetado. Foi uma longa noite seguida por dias longos nos quais os serviços básicos ainda não haviam sido restabelecidos. Está tudo bem por aqui, mas não está tudo bem em vários lugares. E penso na natureza e no que fizemos com ela.
Esses fenômenos não são à toa — e não é a minha mania de romantizar a vida que percebe o passado com nostalgia o que me leva a pensar em outros anos como mais amenos. Ainda que ciclones ocorram aqui anualmente por causa da nossa posição geográfica e do clima, que é diferente do resto do país, a cada ano pode-se observar uma piora nesses eventos: eles estão mais extremos, mais violentos, mais difíceis de se escapar. A natureza possui seus ciclos, mas o que realmente a faz mudar de forma tão drástica e tão rápida somos nós. Me pergunto onde isso vai parar — me pergunto o que faremos no futuro.
Conversando anteontem sobre a minha pesquisa (estou mergulhada na Grécia antiga) começamos a entrar no assunto de mitologia, história e como muitas coisas que acreditamos tão concretas não serão nada além de mitos no futuro. Com o tempo desapareceremos — o que conhecemos desaparecerá, não seremos lembrados por muitas gerações, com exceção de talvez um ou outro cujo registro histórico ou arte sobreviva. Mas Saturno, o grande Senhor do Tempo, a tudo engole — nossas preocupações não são nada perante ele. Tudo o que existe é o tempo — nosso destino nos encontrará, independentemente do quanto planejemos o futuro. E o que restará de nós será pó. O pó da Terra, que a tudo compõe — que se acumula em nossos sapatos, em nossos jardins, em nossos livros. O pó que fez parte de tantos mortos que carregamos conosco diariamente. A violência da natureza transforma-se em beleza com o tempo — em vida. Ainda que nossa memória não resista e que nos tornemos mitos ou a massa anônima que movia este século, ainda que nos destruamos ao forçar a natureza aos seus limites não nos afastaremos desta Terra. Nossa composição química se transformará em outras coisas, e nossas verdades, em mitos. É a metamorfose.
“Quando eu for pó, entoe estas palavras sobre meus ossos: ela foi uma voz.”
— O livro dos anseios, Sue Monk Kidd
Com o passar do tempo percebi que para cada coisa ruim que me acontece há uma boa que vem logo em seguida. No dia posterior ao ciclone levei um susto ao pegar o celular e perceber que a editora havia anunciado o meu livro. Eu não fazia ideia de quando o livro iria sair — recentemente havia decidido a capa, mas não sabia que eles iriam colocá-lo em pré-venda agora. Então esse foi um susto bom — algo de que eu realmente precisava num dia horrível com tanto caos.
Oráculo, meu livro, vem sendo escrito faz alguns anos. Não foi algo intencional, a princípio, no formato de livro — eu simplesmente escrevia porque sentia que precisava escrever, porque o impulso criativo me vinha e eu registrava tudo nos meus caderninhos, que carregava pra cima e pra baixo. E é engraçado que tenha sido anunciado justamente no dia 19, isso porque dia 11 fez 7 anos da primeira vez que eu mostrei a minha escrita para alguém. Foi num evento de artistas independentes que aconteceu em Porto Alegre, do qual uma amiga participava — ela, sabendo que eu escrevia, tratou de me colocar lá para perder o medo de me mostrar no mundo. Eu sou uma pessoa introvertida e nunca havia pensado, até então, em realmente me permitir ser lida por alguém — ou que alguém fosse ter interesse em me ler. Ainda é algo com o qual tenho dificuldade, na verdade. Sempre acho que estou falando sozinha. Mas a gente só pode ser quem é, e eu sou uma pessoa que escreve — será que posso usar a palavra “escritora” sem receio agora?
O livro está em pré-venda — e eu ainda não acredito que isto está realmente acontecendo e fico nervosa ao pensar que alguém vai me ler. Mas cá estamos. Não consigo falar disso sem me emocionar e só posso agradecer ao universo por ter me colocado isso justamente num momento em que eu precisava de algo bom.
Textos da semana
Um Bonde Chamado Desejo: a triste história de Blanche DuBois (Lilia Fitipaldi)
A música popular brasileira em seus tempos de censura (Lyriel Damasceno)
A mão e a luva: Guiomar, a heroína romântica de Machado de Assis (Mariana Branco)
O vazio que anseia: a figura da preceptora no período vitoriano (Ket Santos)
Obra de arte da semana
Pesquisando sobre o culto dionisíaco há alguns meses notei que ultimamente tem sido bem simples encontrar representações e até mesmo matérias e histórias sobre a prática. Claro, a representação artística de Baco e as mulheres que sempre estão ao seu redor, as suas Bacantes, sempre foi uma fortuna muito representada durante a história da arte, desde antes Eurípides escrever uma de suas mais famosas peças, As Bacantes.
Recentemente tomei conhecimento de uma pintura do artista brasileiro Pedro Américo, A carioca, datada de 1882. A pintura representa uma bela mulher que mais parece uma ninfa se banhando nas águas. A alegoria ao Rio de Janeiro mostra a tentativa de representar o Brasil utilizando um tema clássico. Como dito por Claudia de Oliveira e Laura Nery no ensaio “A carioca, de Pedro Américo: alegoria e erotismo no imaginário oitocentista brasileiro”:
“A tela fala dos mistérios da natureza e da geografia local, utilizando-se da beleza e da sensualidade da figura feminina, encarnada numa ninfa grega. [...] A carioca incorpora um ritual de celebração. Introduz no clássico, no apolíneo, um elemento inegavelmente dionisíaco. É exótica. Uma fêmea lendária. Quase uma bacante. Neste aspecto está relacionada ao irracional, ao incompreensível: é o ‘selvagem’ versus o civilizado.”
Alguns estudiosos de Eurípides afirmam que ele era ateu, ou seja, não acreditava nos deuses. Mas suas peças remetem muito ao culto dionisíaco, não apenas porque ele literalmente escreveu sobre as Bacantes, mas também porque seus textos dizem respeito muitas vezes ao caos e à alma, e os personagens mais representados nesse contexto são as mulheres. Afinal, Dioniso é o deus que mais se aproxima dos homens, e também o que mais entende a psiquê feminina. “Apenas as mulheres conhecem Dioniso”, diz Angelina Jolie no filme Alexandre, de 2004. No longa, Angelina interpreta Olímpia, mãe de Alexandre, o Grande. Olímpia, que segundo historiadores, era uma sacerdotisa e descendente de Dioniso.
Faz sentido que ultimamente a áurea dionísiaca esteja mais evidente e palpável, afinal, passamos praticamente 3 anos vivendo enclausurados por conta de uma pandemia que não permitia o toque. O que não se pode esquecer é que Dioniso é também o deus da insanidade, e ele raramente aceita os excessos daqueles que não são justos em suas ações.
Por hoje, é isto.
Lembrando que estamos com chamada aberta para redatoras no Querido Clássico. Todas as informações estão no formulário, que fica aberto até o dia 28/06.
Além disso, estamos lendo Hamlet, de William Shakespeare, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 01/07, às 16h. O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,