Querido leitor,
Ler A redoma de vidro é como adormecer.
Lentamente vamos caindo num estado de imersão, mergulhando num vazio — e, de repente, não há nada além de escuridão e pesadelos.
Na minha adolescência li e reli A redoma de vidro algumas vezes. O livro logo tornou-se um dos meus favoritos e fazia todo o sentido do mundo para mim. Eu, uma adolescente que me enxergava tanto na protagonista da história, Esther Greenwood, não tive dificuldade alguma em me encontrar ali — encontrar certo conforto naquelas páginas ao perceber que alguém havia pensado e sentido aquelas coisas também. De repente, eu não estava sozinha no mundo. É o poder da literatura.
Mas reler esse livro foi diferente. Já chegando aos 30 anos, não mais uma adolescente, encontrei ali uma outra história. A redoma de vidro foi a nossa leitura do Clube do Livro QC em maio. O clubinho tem 3 anos, e embora eu tenha pensado em fazer essa leitura coletiva antes, só agora senti que era o momento certo.
Estar fora da redoma muda tudo. Antes, tão dentro quanto Esther, o que eu enxergava era a similaridade das situações — eu também uma jovem bolsista que sempre tirou notas boas, também fazendo estágio numa revista/ jornal, também escrevendo poemas e contos e sonhando em ser editora, trabalhar com livros e publicar livros de poesia. Mas sentindo um vazio incontornável, uma redoma sufocante encobrindo a minha visão e enfraquecendo os meus membros, não me permitindo mover para direção alguma senão aquela em que eu já estava. Felizmente, consegui acordar do meu próprio pesadelo.
“Para a pessoa dentro da redoma de vidro, vazia e imóvel como um bebê morto, o mundo inteiro é um sonho ruim.”
— A redoma de vidro
Agora, fora da redoma, enxerguei outra história. A leitura não foi a mesma das outras vezes — nem seguiu como favorita, embora eu ainda goste bastante da prosa da Sylvia Plath. Dessa vez, pude me concentrar em todos os problemas sociais encontrados pela protagonista, que só agravam seu estado mental. As limitações de ser uma mulher, de lhe ser oferecida uma fatia do mundo, do conhecimento, para que em seguida lhe seja esperado — exigido — casamento, filhos, uma vida orbitando sua família. Se antes, embora eu tivesse percebido esses temas de maneira mais supercial, o que realmente me tocava de forma profunda era a identificação com o estado psíquico da Esther, agora o que me deixou mais pensativa foi como tudo aquilo poderia ser evitado, como trata-se de um livro violento de tantas formas, como a luta antimanicomial é importante, como é necessário sempre reforçar nossos direitos — de outra forma, um corpo de mulher é só um corpo para a sociedade, propriedade pública, especialmente quando não se comporta da maneira esperada. Foi difícil simpatizar com a protagonista — ela é uma pessoa meio insuportável, independentemente das questões de saúde mental. Mas também é tudo muito triste e com uma sensação desesperadora. Ao invés do reconhecimento visceral e quase cínico de antes, olhar para ela foi olhar para a minha adolescência, meu início de adultez, quando tudo era desesperador de uma forma congelada, tudo imóvel, ainda que em constante movimento, um movimento interno e estranho que não fazia sentido a não ser para quem o experienciasse.
“Me sentia muito calma e muito vazia, do jeito que o olho de um tornado deve se sentir, movendo-se pacatamente em meio ao turbilhão que o rodeia.”
— A redoma de vidro
Durante os cerca de dez anos que se passaram entre uma leitura e outra o livro permaneceu o mesmo, mas eu mudei. E mudando, a história também mudou. Agora, ao invés da adolescente que queria ser tantas coisas, sem perceber me tornei cada uma delas — mas não da maneira que imaginei que seria. Até mesmo o publicar meu livro de poemas está em andamento — na etapa de edição, e será lançado ainda este ano. Nada disso aconteceu como eu imaginei, porque a vida real não é ficção, mas tudo aconteceu e segue acontecendo — o que me faz querer voltar no tempo, abraçar a Mia adolescente e dizer que tudo ficaria bem, que aqueles sentimentos de incompletude, aquela busca por algo — qualquer coisa — que me fizesse sair daquele torpor, aquela ansiedade por ter a absoluta certeza de que nada do que eu desejava aconteceria simplesmente porque existia algo quebrado dentro de mim que me impedia de fazer as coisas, tudo isso era pontual, era um momento, porque a vida é feita de momentos e nem todos são horríveis, são apenas uma parte de muita coisa. Da mesma maneira como ler A redoma de vidro é perceber-se caindo no sono sem conseguir evitar e, de repente, encontrar-se num pesadelo, eu mesma consegui sair do meu pesadelo ao perceber, com muita dificuldade, que os monstros estavam aqui dentro, não lá fora, e eu poderia acordar. Talvez eles aparecessem novamente quando eu caísse no sono, de tempos em tempos, mas eu sempre poderia acordar. Como disse Rainer Maria Rilke:
“Deixe tudo acontecer a você: beleza e terror. Apenas siga. Nenhum sentimento é final.”
Não há nada de especial em identificar-se tão profundamente com a Esther do livro. Não é especial ou bonito sentir-se costurada a uma personagem como ela, que vive tão intensamente um estado de pulsão de morte em busca de uma vida onde caiba. Na verdade, é triste perceber o quão comum ela é, quantas Esthers existem por aí, jovens mulheres com tanto potencial, mas sem conseguir fazer nada com isso, presas em suas próprias redomas.
Reler seus livros favoritos da adolescência fala muito mais sobre nós do que sobre os livros e mostra, com uma clareza cristalina, as mudanças pelas quais passaram ou que nos transpassaram. Ninguém passa incólume pela vida — e isso nem sempre precisa ser ruim.
A Esther do livro me fez sentir mal e triste por saber que, embora apenas uma história, eu mesma e tantas outras mulheres — como a própria Sylvia Plath — passaram e ainda passam por esses sentimentos enlouquecedores de vazio, de tentar mergulhar mais ainda no abismo para encontrar uma saída e só achar algo ainda mais denso e profundo e escuro. A releitura foi repleta de um sentimento de agonia por querer entrar na história e dizer para a Esther que as coisas não permaneceriam as mesmas para sempre — nem ela seria a mesma. Quando estamos na redoma, tudo parece muito definitivo, mas, olhando de fora, percebemos que aquele é apenas um espaço confinado e restrito em uma imensidão e que está longe de ser o todo. É preciso distanciamento e perspectiva, o que apenas o tempo dá. E não há como contornar o tempo. Reler esse livro me fez olhar com distanciamento para situações que eu mesma passei e pensar menos numa perspectiva pessoal — de estar dentro da redoma, de autoidentificação — e mais em como é difícil existir num mundo onde não cabemos direito enquanto mulheres. Ainda que as coisas tenham melhorado bastante dos anos 1960 para cá, elas estão longe de serem realmente boas. E cada pedaço de paz e felicidade vem acompanhado de dor.
Mas não é preciso lutar o tempo todo. Viver não precisa ser uma batalha. Não precisa ser tão difícil — e é isso o que torna tudo tão doloroso, porque nem sempre temos capacidade emocional para lembrar disso.
Finalizei a leitura pensando em quem fui e em quem sou — e desejando ter a capacidade de lembrar, mesmo nas piores épocas, quando somos tão tentados pela escuridão, que os momentos ruins são momentos, não são tudo o que existe.
“Insanity laughs under pressure we're cracking
Can't we give ourselves one more chance?
Why can't we give love that one more chance?
Why can't we give love…?
Cause love's such an old-fashioned word
And love dares you to care for
The people on the edge of the night
And love dares you to change our way of
Caring about ourselves
This is our last dance
This is our last dance
This is ourselves
Under pressure”
— Under pressure, Queen & David Bowie
Textos da semana
Oscar Wilde: uma história sobre arte, amor e legado (Cecília Amaral)
O Renascimento nórdico e a caça às bruxas (Babi Moerbeck)
Luz, câmera, som! - 9 filmes sobre a transição do cinema mudo para o falado (Thais Fraccari)
Effie Gray: a história de um dos maiores escândalos vitorianos (Mia Sodré)
As leis e as lutas de Lidia Poët (Ket Santos)
Obra de arte da semana
Quando entrei na faculdade, a primeira aula de História da Arte tinha como tema “iconografia do terror”. O que aprendi naquele período praticamente moldou o que eu viria a pesquisar mais pra frente. O tema das aulas abordava muitos dos meus interesses, como deuses gregos e bruxas, e a cronologia ia da Grécia antiga até Psicose de Hitchcock. Foi em uma dessas aulas que ouvi pela primeira vez o nome de Goya. Suas pinturas e gravuras, bruxas e monstros, grudaram na minha mente e nunca mais saíram. A obra de que falo faz parte de uma série de 80 gravuras de Goya denominada “Los Caprichos”, uma dessas gravuras — “O sono da razão produz monstros”.
Francisco de Goya é um dos mais famosos e reconhecidos artistas do mundo. Nascido na Espanha do século XVIII, suas obras refletiam o momento difícil que sua terra natal passava, como guerras, questões políticas e o fanatismo religioso. Mas também seus próprios problemas pessoais, como é o caso das suas “Black paintings”, pinturas que Goya produziu próximo ao fim da vida, passando por graves problemas de saúde. Dentre essas pinturas vale destacar “El Aquelarre” e “Saturno devorando um filho”.
As 80 gravuras presentes na série “Los Caprichos” podem ser divididas em duas partes. A primeira é mais satírica e crítica com a realidade do momento histórico que Goya vivia e também da vida como um todo. É na segunda parte que Goya explora outros mundos, como o dos sonhos, apresentando monstros e criaturas delirantes que permeiam seus sonhos e visões. Como escrevi no texto “Gótico: um pesadelo em Villa Diodati”:
“O mundo dos sonhos é o lugar onde a monstruosidade e a realidade se colidem, onde o real e a imaginação travam uma batalha. É um mundo capaz de criar um horror impossível de desviar o olhar, pois está acontecendo dentro de sua própria mente, uma fábrica de pesadelos com criaturas que desejam ganhar vida no mundo desperto.”
Eu não estava pensando na gravura de Goya quando escrevi isso, é algo que normalmente acontece comigo quando durmo. Pesadelos raramente me assustam, o que eles fazem é justamente o contrário, me dão inspiração para escrever. Eu fiz as pazes com meus monstros há muito tempo. Quando observo a gravura de Goya, entendo que a razão desaparece conforme se entra ainda mais no mundo dos sonhos, e que neste mundo paralelo se abrem inúmeras oportunidades de criar e se reconciliar consigo mesmo. O homem na gravura envolto por animais da noite, como corujas, morcegos e felinos, me traz, na verdade, certa paz. Observar aquele homem se deixar levar pelo sono da razão é se sentir livre para se entregar ao caos e produzir monstros que se materializam no mundo real e que velam seu corpo adormecido quase como se o protegessem dos monstros do mundo real e da dura realidade do mundo desperto.
Por hoje, é isto.
Com um pouco de atraso, pois a vida, às vezes não conseguimos seguir o nosso próprio cronograma.
Lembrando que estamos com chamada aberta para redatoras no Querido Clássico. Todas as informações estão no formulário, que fica aberto até o dia 28/06.
Além disso, estamos lendo Hamlet, de William Shakespeare, no Clube do Livro QC. O encontro para conversarmos sobre a obra será no dia 17/06, às 16h (adiantado para não atrapalhar a festa junina de ninguém). O link para o encontro por videochamada será enviado no grupo do telegram.
Se cuidem e bebam água. :)
Abraços,