#30 - Tudo que é sólido desmancha no ar
"the older i grow, the more i do love spring and spring flowers. is it so with you?" (emily dickinson)
Querido leitor,
É primavera. O título desta edição pode soar ameaçador e sombrio, mas não é o caso: o sólido desmancha-se para dar lugar ao espaço, e é no espaço que vemos a luz. Foi Simone Weil quem escreveu (em minha tradução) que “o amor não é uma consolação; o amor é luz”; e Maggie Nelson, citando a filósofa, completou: “eu desejava ser uma estudiosa não da espera, mas da luz”. Todavia, para que sejamos tocados pelos claros raios da aurora (de belas tranças, como é dito na Odisseia), é necessário espera. A espera nos faz introvertidos, desesperados e estranhos. Cavouca buracos dentro de nós. Faz com que prestemos atenção a detalhes que passaram uma vida inteira despercebidos, insignificantes perante tanta bagunça e correria. A espera é um movimento ativo de atenção — é o enigma do correr parada. E ainda que seja estar suspenso em si mesmo, é necessária. É na espera que aprendemos a apreciar as chegadas — no plural, pois tudo é cíclico. É primavera, e o sólido desmancha-se para dar lugar à luz.
A última vez que abri o Substack para escrever uma edição foi no dia 25 de agosto. Havia escrito o seguinte:
“Comecei a escrever esta edição em pleno Imbolc, um dos oito sabbats do ano. Este, que ocorreu no dia 1° de agosto, celebra a consciência de que o despertar da primavera logo vem, de que a noite escura está chegando ao fim e que o inverno irá embora. Me encantei ao perceber que escrevia sobre a alegria compartilhada justamente no momento da Roda do Ano em que celebram-se os novos começos num festival de luzes. A palavra, originária do irlandês antigo, significa ‘dentro do útero’, fazendo referência à gravidez e ao despertar do mundo, que recolhe-se no inverno — mas, num sentido místico, fala de ciclos da vida que acabam para darem lugar a outros caminhos sob luzes calorosas.”
A vida aconteceu, fui viver a minha própria semeadura, e o texto ainda não foi finalizado, mas nada nunca o é. Os textos crescem feito flores num campo que aos poucos vou regando, visitando, com eles conversando até que estejam prontos para tomarem outros caminhos. Tudo é caminho, afinal de contas, e há que se amar a jornada.
Se havia começado a escrever no Imbolc, hoje escrevo em Ostara, o equinócio de primavera. Não tinha planos para tal — não acordei pensando em seguir a Roda do Ano nesta newsletter —, mas ouço o ritmo da natureza — é tempo de reinícios.
Entre sonhos significativos e a sensação de que há uma promessa no ar, encontro-me em paz. Uma amiga me falava semana passada que é incrível como eu não surtei este ano, especialmente durante as enchentes no RS. E olhando em retrospecto, posso apenas dizer que aprendi a cultivar a temperança — ou seja, a paciência e a esperança. A vida vai ser a vida, e sempre haverá tragédias — mas é preciso saber que elas também passam, respirar fundo e seguir em frente, fazendo o possível todos os dias. Haverá dias em que esse possível será menor do que uma colher de chá, mas tudo bem: o importante é continuar. Os anos, especialmente desde o início da pandemia, me fizeram entender que a paciência é uma prática. Não trata-se de uma qualidade inata de seres elevados, mas de algo que precisamos efetivamente cultivar. É necessário respirar fundo e olhar para o cenário de maneira geral ao invés de focar em suas tristezas individuais que, quando supervalorizadas, levam a uma autopiedade perigosa, capaz de causar grandes estragos. É preciso sentir os sentimentos, mas não permitir que eles sejam a totalidade da vida, não deixando a energia do desespero tomar conta, mas concentrando-se no possível. As coisas mudam. Nem sempre para melhor, é verdade, mas a única coisa com que podemos contar é a mudança. Sabendo disso, basta viver. Um dia de cada vez.
Mas é primavera, e o ar, ainda que pesado, carrega a semente da promessa de renovação. Quem lida com a natureza sabe que há ciclos de plantação e colheita — e sabe que cada planta tem seu tempo propício. Este é o tempo das promessas, da renovação, da fertilidade. Tempo de olhar-se no espelho e sentir-se viva, sentir o próprio corpo pulsar em harmonia com o som dos pássaros. Tempo de desabrochar a beleza interior junto das flores, sentir a transformação do que vem de dentro refletindo no de fora, fazendo companhia às pétalas que, de tantas maneiras, são nossas anfitriãs. Em Ostara, as sementes plantadas em Imbolc começam a germinar. Não é preciso acreditar na Roda do Ano num sentido místico para entender que os símbolos carregam verdade — e que, sendo natureza, nos sentimos renovados e dispostos a abrir a janela e ver as flores sorrindo e a luz do sol iluminando a terra.
As palavras são tradução do inefável, e a própria primavera é uma maneira de traduzir a abertura das portas após a espera do inverno. Eu dizer “primavera” evoca em cada pessoa uma associação diferente, um cheiro específico, uma lembrança colorida. A primavera é uma, mas seu sentido abarca o todo da subjetividade. Como traduzir o inefável? Se, como disse Shakespeare, a rosa ainda seria rosa mesmo que fosse chamada por outro nome, a terminologia que usamos não faz diferença: a realidade é uma, e o perfume do novo ciclo invade nossos sonhos.
As semeaduras
Não envio nenhuma edição da newsletter desde julho — há alguns motivos para isso, mas não quero discorrer sobre as minhas tristezas. Para além dos compromissos e caos da vida adulta, tenho me dedicado, de forma inconsciente neste sentido tão específico, mas, sorrio ao constatar, ainda real, a semear o que quero para a minha vida: literatura, arte, estudos, tudo no solo fértil do fazer aquilo que se ama.
💐 Escrevi um romance — o meu primeiro. Ainda não sei o que farei com ele, mas está escrito e eu estou feliz;
💐 Meu livro (de poesia), Na casa dos suspiros, entrou em pré-venda pela editora Urutau. A pré-venda já acabou (e a vida foi tão corrida nesses dias que nem tive tempo de vir aqui divulgá-lo!), mas logo ele estará disponível no site da editora, e estou organizando o lançamento presencial, que será em Porto Alegre;
💐 Tenho lido muitos livros teóricos para a minha dissertação, e tem sido maravilhoso. Pesquisar o que eu amo é realmente algo satisfatório e divertido;
💐 Aliás, o mestrado está sendo incrível, e as disciplinas do semestre, embora on-lines, por causa das enchentes, foram maravilhosas;
💐 Tenho também escrito muito — academicamente falando;
💐 Recebi, na semana passada, o manuscrito do meu conto, que será publicado logo, com as anotações das editoras da revista. Estou trabalhando na versão final dele e estou muito feliz, pois é uma história que escrevi com carinho no ano passado e que será o meu primeiro texto de ficção em prosa publicado! E, ainda por cima, numa editora que admiro profundamente;
💐 Nesse meio tempo, comecei a fazer aulas de grego antigo e latim. É certamente bastante coisa, mas eu amo, e a verdade é que estou encantada por poder mergulhar nesse mundo antigo, agora conhecendo melhor também essas línguas da Antiguidade clássica, cujo aprendizado tem me proporcionado muita felicidade;
💐 Estou organizando um curso de extensão que darei neste semestre — ainda não posso revelar muito mais do que isso, mas fica aqui o pequeno spoiler de algo muito legal que vem aí;
💐 Comecei a cursar a Especialização em Literatura Brasileira — e tem sido incrível. Tenho aproveitado o meu tempo estudando aquilo que amo e escrevendo todos os dias, e se isso não é uma bela semeadura, eu não sei do que poderia chamar.
Leituras
Embora eu esteja lendo e escrevendo bastante, as minhas leituras têm sido mais teóricas do que literárias. Desde as enchentes e dos problemas estruturais que tivemos aqui em casa (que segue em reforma, o que configura um caos diário), meus livros físicos foram atingidos e não sobrou quase nenhum (inclusive, queridos, se alguém quiser me presentear em algum momento, livros são o presente ideal), então me restaram as leituras no Kindle, o que funciona muito bem, mas não é a mesma coisa, e diminuiu o meu ritmo e leitura por algum tempo. De qualquer forma, li livros interessantes nesses dias:
📚 Bluets, da Maggie Nelson, foi uma surpresa: o encontrei ao procurar a citação do início do texto, com a qual me deparei aleatoriamente no Tumblr e que me deixou muito pensativa. Trata-se de um livro estranho, formado de aforismos sobre a cor azul. A premissa é simples e intrigante: a autora apaixona-se pela cor azul. A partir daí, as reflexões surgem de forma quase espontânea, numa espécie de fluxo de pensamento que flerta com o lirismo.
📚 Lisístrata, do Aristófanes, foi uma releitura muito divertida. É uma peça grega clássica e conta a história de uma revolução de mulheres que, em prol de acabar com a infinita guerra, fizeram uma greve de sexo coletiva. Já havia lido essa peça há uns 10 anos, e a releitura foi maravilhosa, especialmente porque agora eu entendo muito melhor o contexto da comédia do que antes. Recomendadíssima.
📚 De mais a mais, há alguns outros tantos livros que estou lendo, aos pouquinhos, e sobre os quais comentarei quando finalizá-los, mas de que tenho gostado bastante, como A falência, da Júlia Lopes de Almeida; Úrsula, da Marina Firmina dos Reis; Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst; A ignorância, do Milan Kundera; e Rei Lear, do Shakespeare — fora as leituras teóricas, é claro, e Mrs. Dalloway, da Virginia Woolf, que é o livro do mês no Clube do Livro QC.
Algumas coisinhas:
Neste mês, como falei ali em cima, estamos lendo Mrs. Dalloway, livro da Virginia Woolf, no Clube do Livro QC. O encontro será no dia 29/09, às 16h, por videochamada — cujo link será enviado no grupo do telegram.
O QC tem uma campanha no Catarse — que está atualizada, por sinal! Confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥
Dentre as recompensas, está o Clube do Conto: é semelhante ao Clube do Livro QC, mas de contos, pois adoro contos e sinto que poucas vezes temos a oportunidade de nos aprofundarmos neles. Assim, mensalmente debatemos a fundo um conto escolhido por mim. O próximo encontro será no dia 06/10, e nele falaremos sobre Os porcos, da Júlia Lopes de Almeida. Os links dos encontros serão enviados para os apoiadores do Catarse do QC como recompensa — dentre outras coisas, como um guia de leitura da obra do mês etc. Espero encontrá-los lá. :)
Por hoje, é isto.
Abraços e bebam água,
Mia
que texto lindo ❤️ boa sorte na sua jornada com seu romance!
muito bom te ler de novo e que esse romance te traga muitas alegrias! (e que chegue em mim se vc quiser q ele seja publicado! haha)